Do papel # 28
Entrevista com a Banda Ira! (Nasi, Edgard Scandurra, Ricardo Gaspa e André Jung), publicada na revista Bizz 33, de abril de 1988. À época, a banda tinha acabado de gravar o disco Psicoacústica. Para ampliar as páginas da revista, clique nas imagens.
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A Idade da Razão? Ira!
Quais terão sido as mudanças de comportamento do grupo paulistano depois de ter uma música na abertura de uma novela? Será que as sementes funky que já aparecem em Vivendo e Não Aprendendo se desenvolveram? O que aconteceu de fato no Hollywood Rock? E mais dezenas de interrogações para uma banda que sempre pontuou sua trajetória com vigorosas exclamações (!)
por Marcel Plasse
Descontração no estúdio Nas Nuvens do Rio. A mixagem do novo LP acaba de ser finalizada: trabalho duro para o quarteto que resolveu assumir a produção das gravações. Como colegiais na véspera dos exames finais, colocaram a fita para tocar pela primeira vez. Não há dúvidas: o Ira! gravou seu melhor LP. E, sim, comecemos pelo novo disco...
André - No fundo, esse disco tem o que a gente queria que o Vivendo e Não Aprendendo também tivesse tido: sonoridade acústica e pesada ao mesmo tempo. O problema é que o disco anterior foi feito em várias fases — fases demais! Foi gravado no Rio e mixado em São Paulo, passou por muitas mãos...
Edgard - A gente não procurou ter uma linguagem única de sonoridade nesse disco, enquanto que nos anteriores rolava essa preocupação em ter uma espécie de padrão, uma uniformidade.
Nasi - Muitas pessoas me falaram: “pô, já sei, o próximo disco do Ira! vai ser todo funk” — ou vai ser funk ou mod... Não é nada disso! Nossa música está acima dessas coisas.
BIZZ - Vale a pena ter música em abertura de novela?
Gaspa - Vale se você se situar no Brasil e se colocar numa carreira de músico profissional, onde você toca no país inteiro por causa dessa música e não pelo teu trabalho.
André - A gente não tem a pretensão de estourar e ser “A Banda do Brasil”. Nunca foi a nossa! O nosso lance é muito mais musical. Então, a gente procura ter uma divulgação que preserve esse nosso critério. Vamos aparecer na TV? Vamos, mas vamos aparecer tocando, sabe, não fazendo playback. Não vamos aproveitar qualquer onda! A impressão que algumas pessoas têm é que a gente nada em dinheiro. (Com malícia.) “Ah, vocês estão com música na novela, né? Agora vocês estão ricos!” Puxa, a gente dá um duro danado e a conta bancária zerando...
BIZZ - Vocês não acham que tem muita gente ganhando dinheiro com música neste país?
Nasi - Da nossa geração é uma minoria absoluta. Mas existem os marajás, claro (risos)!
André - De qualquer forma, eu sempre vou tocar com os amigos quando eu tiver oportunidade. Nada supera esse prazer. Aliás, a coisa mais legal que a gente fez no ano passado foi ter trabalhado com caras como o Thaíde, o pessoal da Fábrica Fagus, o Theo Werneck e todas as pessoas que a gente teve contato. Foi uma experiência enriquecedora...
BIZZ - Foram essas experiências que geraram expectativa de que o Ira! poderia pender para o funk no novo LP. Em pelo menos uma faixa, “O Advogado do Diabo”, dá para sentir essa influência. Se bem que eu esperasse ouvir um rap, a música tem uma sonoridade meio brasileira...
Nasi - Eu fico p* quando alguém fala que é rap! Essa música tem uma característica dançante, mas a gente procurou não usar nada que a conduzisse eletronicamente. O que existe é uma condução humana, mântrica.
André - Ela é toda baseada em percussão. Ela começa com um padeiro, depois entram tímbales, uma pandeirola e temrina com uma conga. A gente também usou o sampler de uma caixa de “It’s a Man’s, Man’s World” (James Brown!)
BIZZ - Apesar disso, a característica mais marcante do novo trabalho é o hard, um rock mais pesado que o dos LPs anteriores...
Edgard - É o lance da guitarra. Agora tem muito mais guitarra. Nos outros discos, ela foi meio contida. As guitarras dos primeiros discos são conceituais, naquela postura mod de guitarra simples, limpa, radical...
BIZZ - Como foi que isso mudou?
Edgard - Teve uma época em que eu me senti meio no meu limite de criação como guitarrista. De repente, eu me dei conta de que já toquei de outras formas. Não fui somente um guitarrista de ritmo, já fui solista também. E já experimentei coisas bem ousadas em jams, como o resultado final da música “Mesmo Distante”, que encerra o disco. Ela tem efeitos de inversão de guitarra, base de violões e inúmeras sacadas que a maioria das pessoas vai ficar se perguntando do que se trata.
André - É, no disco o Edgard toca banjo, craviola, guitarras, sampler de voz...
BIZZ - Até o segundo disco, por sinal, o Ira! só gravava composições do Edgard...
Edgard - As músicas do primeiro LP eram composições da primeira formação, já prontas. As do segundo também eram músicas antigas — nós ainda estávamos tentando registrar o nosso material —, de uma época em que eu escrevi muito. Agora eu estou mais calmo (risos)! Nesse disco, como nós fomos os produtores, tivemos mais tempo pra questionar, experimentar. E isso fez pintar músicas de todo mundo. Todos compõem no Ira!
BIZZ - Vocês têm uma ligação muito forte com São Paulo. Nos primórdios, costumavam até usar uma bandeira do Estado como cenário.
Edgard - Era uma ligação juvenil. Naquela época era uma postura mod. A gente queria mostrar o nosso som e ao mesmo tempo mostrar de onde a gente vinha...
Nasi - Personalizar a origem. Acho que isso acontece, de certa forma, também no Sul. O público do Sul gosta com um carinho especial das bandas de lá. O nosso som agrada a pessoas aqui no Rio e em vários outros lugares, mas é especial você saber que existe uma coisa além...
Edgard - Além do mais, a gente tem uma música para São Paulo: “Pobre Paulista”, uma música feita há muito tempo. Eu e o Nasi estávamos no colegial. O bairrismo era extremo, então. Não era nem São Paulo, era Vila Mariana, o bairro onde a gente vivia.
Nasi - Acho que o legal de “Pobre Paulista” é que ela veio do nosso tempo de escola, mas consegue se comunicar com a juventude ainda hoje. Ela cresceu da nossa escola pro nosso bairro, pra nossa cidade...
BIZZ - Acho que ninguém discorda que as músicas do Ira! são as que melhor retratam aquele espírito de rock’n’roll que sempre se espera que as bandas manifestem, mas que elas não produzem mais. Ou seja: o espírito de rebeldia juvenil.
Edgard - O jovem está se arriscando a se tornar um babaca, um reacionário, um cara com a mentalidade da televisão. As nossas letras falam de caras que se tocam desse perigo.
André - As pessoas precisam ser chacoalhadas. Tem muita gente no Brasil só assistindo ao noticiário pela TV. Assistindo o que vai acontecer agora — mais um pacote, mais um congelamento, e agora?
Nasi - Às vezes, tratam a gente como moleques. Eu sinto isso, por nos tacharem de rebeldes de uma maneira jocosa. “Ah, os garotos”...
Edgard - O jovem tem que se tocar que ele não é obrigado a virar um velho conformado que apoia a direita!
"O jovem está se arriscando a se tornar um babaca, um reacionário, um cara com mentalidade de TV. As nossas letras falam de caras que se tocam desse perigo" (Edgard)
"As pessoas precisam ser chacoalhadas" (André)
BIZZ - Por sinal, André e Gaspa acabaram de virar papais e o Edgard está a caminho.
Edgard - Não somos mais moleques tocando, mesmo! Acho que eu vou ser... um bom pai. Mas, independente de nossa idade, que nem é tanta assim [nenhum tem 30 anos], a gente sempre vai procurar se dirigir à juventude. A gente nunca vai fazer música de dor-de-cotovelo, por exemplo.
Nasi - Eu vi a apresentadora do Hollywood Rock na TV dizendo: “O Ira!, que depois de ‘Fores em Você’ saiu da clandestinidade...”. Pô, eu acho que nunca teve tanta gente nos vendo tocar ao vivo na televisão quanto naquele dia, mas, sabe, a gente não saiu da clandestinidade depois de “Flores em Você”. A gente tinha um LP que foi super bem conceituado, tinha uma estrada, uma legião de fãs etc. e tal. Parece que a gente vai crescendo como naquele filme, O Tambor [de Volker Schlöndorff], com as pessoas nos tratando como se ainda fôssemos crianças. Só porque você parece ingênuo, porque você ainda é um pouco idealista — coisa que você tem que ser realmente... Hoje em dia, a gente não vive mais exatamente no mundo dos ideais, mas num mundo com coisas que a gente sabe que são importantes, por exemplo, posições firmes para que possa existir um espírito no nosso trabalho. Nós temos personalidades inquietas!
BIZZ - Bem, nesse novo disco não há nenhuma balada com quarteto de cordas (risos). E ele acabou se chamando Psicoacústica. O que é psicoacústica?
Nasi - É o estudo das influências que ambientes de tamanhos diversos causam num mesmo som, numa mesma música. Esse nome saiu no final das gravações, no estúdio, depois da gente ter tentado vários outros.
Edgard - Trata-se de um disco de mensagens inspiradas. E essa inspiração é psicoacústica.
André - A gente deu valor a detalhes do nosso som que são quase incidentais, procurou não fazer as músicas em bloco. No meio de um processo cada vez mais industrializado da indústria de consumo, a gente procurou preservar um processo bem artesanal de fazer música.
Edgard - A gente utilizou os recursos modernos de maneira simples. Procuramos soluções muito mais arcaicas, de repente, do que o uso de um sampler, por exemplo.
André - Tem muita gente vendendo qualidade pelo preço do equipamento que tem... Isso, meu, é um papo furado! Criatividade se faz com três instrumentos.
Nasi - Os caras do Vzyadoq Moe, por exemplo, são modernos, usam tecnologia de uma forma arrebatadora e são supersimples.
André - Há muito tempo as bandas nacionais conseguiram reunir capital para investir em equipamentos, tipo últimos lançamentos tecnológicos. Não que isso não tenha valor. Eu acho que a música tem que evoluir em todas as frentes, inclusive a tecnológica. Agora, não dá para colocar isso acima da criatividade. Trazer uma proposta musical não é trazer um aparelho novo e ligar. A criatividade, de repente, caminha muito mais rápida do que a tecnologia. E chega de papo furado, entendeu!
BIZZ - O Ira! tinha um carma de ser uma banda anos 60...
André - Coisa que a gente preserva, bicho!
Nasi - O rock dos anos 60 nos influencia de uma forma muito maior do que a paixão pelo Who ou pelo Zeppelin, mas pela ousadia que existia nessa época, de meter a mão no som, de criar sons radicalmente diferentes do padrão de qualidade vigente.
BIZZ - Vocês pegaram mais o punk do que os sixties...
Nasi - Não necessariamente. A gente já se imaginava no rock um pouco antes do punk. As influências são muito amplas, apesar do punk estar mais próximo da nossa geração.
Edgard - O Ira! pintou na época do movimento punk em São Paulo. Nosso primeiro cartaz de show falava em “punk rock e new wave”... Isso pra nós era uma coisa só.
Edgard - Quer dizer, a gente associava isso a um lance novo.
André - Aquele momento foi uma despadronização radical. E era genial por isso.
Edgard - Até virar moda. E new wave pra nós era o Jam, não o B-52’s! A gente tocou em festival punk. Até que começamos a encontrar um som nosso, próprio, que se distanciou desse movimento.
Nasi - O nosso som era rock’n’roll, do mesmo modo que o dos Sex Pistols era. A gente tocava música do Who, dos Stooges... Era uma coisa muito maior do que ser hardcore — eu até curto coisas de hardcore, de energia rock, juvenil... É bom descobrir ou redescobrir boas músicas.
BIZZ - Vocês também curtem quadrinhos, não?
Edgard - É, eu até escrevi e desenhei quadrinhos. Uma vez eu mandei umas das minhas histórias para um programa da TV Cultura, chamado A História do Desenho Animado, e o apresentador mostrou. Chamava-se “João, o Caveira” (risos).
Nasi - A letra de uma música do nosso disco, “Rubro o Zorro”, é quase uma história em quadrinhos.
Edgard - É uma BD [Banda Desenhada, termo de Portugal para história em quadrinhos] clássica.
Nasi - Tudo começou com uma pesquisa sobre “o bandido nacional” que acabou se tornando uma mistura de vários personagens, inclusive do “Bandido da Luz Vermelha” americano — ou seja, um cara que foi condenado injustamente e executado. O lance de morte é uma coisa que ainda existe e que paira, inclusive, sobre o Brasil. Em suma, o mais importante de tudo isso é a barbárie da Grande Morte. Com a maior naturalidade, executa-se uma pessoa sensível como o possível Bandido da Luz Vermelha, capaz de escrever livros, tornar-se advogado, tudo dentro do regime opressivo de uma prisão. Na música, claro, isso passa de uma maneira mais relaxada, como um bangue-bangue de quadrinhos... Hoje mesmo eu me encontrei com o Rogério Sganzerla [autor do filme O Bandido da Luz Vermelha nacional, de onde foram extraídos alguns tiros e falas para a música] e foi uma sincronicidade de ideias incrível! Acho que ainda devem rolar coisas disso (um clip, talvez? Suspense, suspense).
BIZZ - Que outros sons foram sampleados?
Nasi - Em “O Advogado do Diabo” tem um final com um discurso religioso captado em AM, que eu não queria que se falasse que é da (...). Eu nunca vou declarar isso! Não tem nome de ninguém lá. E eu não quero fazer propaganda desse órgão que eu acho terrível, tá? A música é “O Advogado do Diabo” e nós pensamos em colocar o verdadeiro diabo no fim dela: o discurso religioso moralista desses caras, uma coisa muito perigosa [o discurso diz: “Não adianta, porque tem que haver rico, tem que haver pobre; tem que haver branco, tem que haver preto; tem que haver patrão, tem que haver empregado, porque Deus quer assim...”]. Mas é algo que eu quero que entre como acidente. Como qualquer pessoa que ligue o rádio AM e capte uma mensagem dessas a qualquer hora. Foi o que eu percebi. Eu peguei superacidentalmente, na madrugada antes de colocar isso no disco.
BIZZ - Edgard, o que houve no Hollywood Rock, que você acabou jogando a guitarra no chão?
Edgard - A gente teve muitas dificuldades durante a passagem do som, limites, cobranças de tempo para montar o palco, não teve luz... Mil coisinhas que foram alimentando um nervosismo. E tudo explodiu na música “Gritos na Multidão”. Depois daquela guitarrada ficou tudo mais tranquilo.
André - E depois que a gente fez um show em São Paulo que não acredito que a crítica tenha visto — e se viu... Bom, a gente tem uma fita do show inteiro gravada que mostra como ele foi excelente! E isso também serve de resposta ao que aconteceu no Rio.
BIZZ - Essa fita vai entrar no disco?
Edgard - Na verdade, é uma surpresa. Tem músicas muito boas gravadas. Aguardem, aguardem...
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Abertura da novela O Outro, com "Flores em Você" (Edgard Scandurra):
"Rubro Zorro" (Scandurra, Jung, Gaspa, Nasi), de Psicoacústica:
"Advogado do Diabo" (Nasi, André Jung), do disco Psicoacústica:
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