por Amador Ribeiro Neto
Observação do verão traz poemas redigidos numa sintaxe que usa minimamente pontuação. E joga com a estruturalidade dos versos produzindo inusitadas leituras rítmicas e semânticas. Além disto, a interrupção da linearidade das imagens, associada a ideias inconclusas, dá o tom diferencial e singular de Gastão Cruz nesta primeira parte do volume.
No poema “Aniversário”, por exemplo, cada estrofe encerra um universo: “Este dia situa-se no vértice / errado do verão // Entre o poema e o sol hesito mas decido / reconstruir o dia / mesmo que edificá-lo não termine // Que dia ergo como se poesia / ele não fosse? E lembro o aniversário / que não divide o verão / somente agosto // Fosse um erro a verdade do verão, / a ilusão de que ninguém está morto”. A linguagem é a da bricolagem de percepções em devir contínuo.
A data do aniversário é um referente de referências dissimuladas. A vida é simulacro e representação. O poema se dá neste interstício entre o objeto e o que se pensa dele. Não o que ele é. Ou o que ele encerra.
Esta parte do volume consolida-se numa linguagem cuja exatidão se dá na feitura de uma expressão literalmente atada à materialidade das palavras.
Em Fogo a dicção poética se altera. Os 42 poemas, todos apenas numerados, elegem a coloquialidade como recurso de linguagem. Ser coloquial aqui é conhecer a língua do povo e usá-la com maestria poética. Ou seja: com o sabor do que é leve e inesperado. Em outras palavras: do trivial revisitado.
Ir ao cinema, sem dinheiro, e comer num bar reles, deixa de ser clichê quando o poeta insere a representação como matéria de reflexão do eu-poético: “Íamos ao cinema com dinheiro / emprestado e comíamos depois num / snack-bar e isso / podia parecer o paraíso / se tal palavra para nó fizesse / algum sentido ou tivéssemos / sequer plena consciência do vivido”.
A suspensão dos sentidos, todavia, continua nesta segunda parte do volume. No poema 17 a poesia bica-se com a filosofia. Deste embate salva-se a palavra na sua concretude mais palpável: meio por excelência da poesia: “Há perguntas a que não sei responder / respondi, e fiquei a pensar se existiria / alguma a que soubesse dar resposta; / fizemos as perguntas: isto fora / o começo de um verso / perdido no olvido ou apenas, / como o voo do tempo, suspendido”.
Gastão Cruz, em Observação do verão seguido de Fogo faz o leitor repensar a poesia enquanto produtora de diversas dicções. Todas, no entanto, apontando para o ato de refletir sobre a representação poética e sobre a produção do poema. Um poeta que deve ser lido com atenção e deleite.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 15 de agosto de 2014, p. 7.
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