terça-feira, 24 de junho de 2014

Angélica Freitas



por Amador Ribeiro Neto

Angélica Freitas (Pelotas, 1973) é formada em jornalismo pela UFRGS e publicou dois livros de poemas pela renomada editora Cosac Naify, de São Paulo.

Sua estreia se dá em 2009 com Rilke shake. No mesmo ano o livro tem duas edições. Um fato raro em poesia. Em 2012 publica Um útero é do tamanho de um punho. Em um ano, o livro que contara com uma tiragem inicial de respeitáveis 2 mil exemplares, logo tem nova reimpressão.

Que encantos tem a poesia de Angélica Freitas? Vamos ao poema que abre o livro. Cito-o, como sempre farei neste artigo, integralmente:

DENTADURA perfeita, ouve-me bem:
não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
ah, sim, shakespeare é muito bom,
mas e beterrabas, chicória e agrião?
e arroz, couve e feijão?
dentinhos lindos, o boi que comes
ontem pastava no campo.  e te queixaste
que a carne estava dura demais.
dura demais é a vida, dentadura perfeita.
mas come, come tudo que puderes,
e esquece este papo,
e me enfia os talheres.

Lido o poema perguntamo-nos: a intenção é fazer poema-piada à la Oswald? Longe, muito longe do que o poeta fazia, numa síntese brilhante de humor e intertextualidade. A intenção é parodiar Drummond? Não consegue. Sua pseudoparódia não chega a lugar algum. Esgota-se nos trocadilhos duvidosos e nos clichês dos clichês, sem finalidade. A intenção é fazer poesia coloquial? O tratamento textual não surpreende, não sai do usual e, assim, não promove o desvio da norma tão caro à poesia. A intenção é escrever por escrever? Ah, isto foi conseguido. Mas não há méritos nesta empreitada.

Angélica Freitas atira para todos os lados e não acerta o alvo. Resta uma dúvida: ela tem alvo? A dentadura seria um deles? Creio que não. Então, por que abre a boca, menina? Oras, “esquece este papo”. E não reclame se enfio-lhe “os talheres”.

Uma das funções da crítica é apontar as qualidades, ou a falta delas, a fim de informar o leitor. Angélica Freitas vem sendo aclamada por uma parte significativa da crítica dos jornais de cultura deste país. A questão é que esta crítica, como estamos cansados de saber, tornou-se rasteira. E não há espaço suficiente para se discutir um poema, um conto sequer. Daí que a louvação cai no sem-sentido. Isto não é bom pra literatura. E pra nenhuma arte. Mas é o que tem acontecido. Devido ao exíguo espaço dos jornais? Devido à submissão ao politicamente correto  a crítica se tornou sinônimo de elogio? Sempre enxergar o lado bom de tudo? Vivemos mergulhados em um elã à la Poliana? Ou à poliartrite das múltiplas e duvidosas articulações?

Vamos ao poema que encerra o livro:

fim

keats quando estava deprimido
se sentindo  mais pateta que poeta
vestia uma camisa limpa
eu tomei  um banho
com os dedos  ajeitei  os cabelos
vesti roupas  limpas
olhei praquele espelho
o suficiente pra
sem relógio caro
fazer pose de lota
e sem pistola  automática
pose de anjo do charlie
então eu disse: “é, gata”
rápida peguei as chaves
saí  num pulo
só fui rir no elevador.

Lemos o poema e ficamos pensando: é ingenuidade ou falta de informação da poetisa? Ou, quem sabe, ela esteja usando a cartilha de algum poeta canastrão que ainda não se deu conta de que a poesia espontânea nunca teve lugar na sala de qualidade estética? Angélica Freitas revela um desconhecimento tão grande da história da poesia – brasileira e estrangeira – que chega a corar seu leitor. Ela o faz sentir-se “pateta”. Em tempo: epifania e alumbramento – dois conceitos da maior importância estética – não são recursos presentes em seu livro. Ela só dá bandeira, ela só dá bandeira...

Seu poema, via de regra, é uma sucessão de imagens que buscam o nonsense através de intertextualidades. Pena que ambos, aqui, estejam desprovidos de uma funcionalidade.

É, por exemplo, o nonsense pelo nonsense. Então pra quê? O melhor dos recursos poéticos quando usado gratuitamente não se propaga, não rende poesia, não desinstala o leitor. Antes: aloja-o numa posição confortável, já que facilmente digerível. Poesia é pedra de quebrar dente, nos ensina João Cabral. O fácil enfada, nos lembra Valéry.

Tomemos as intertextualidades: o que acrescentam ao poema “fim”? Quando se incorpora a voz do outro é com uma destinação. Evidente. Não como um falso objetivo. Outra coisa: a presença da voz do outro não é garantia de qualidade. Caso contrário, quem saísse por aí colando citações seria, de per si, um poeta. Sabemos que não é.

Angélica Freitas deve deixar a poesia dos outros poetas em paz e fazer sua própria poesia. Coisa que ela não consegue neste livro de estreia.

Vamos a outro poema do mesmo livro:

AGOSTO A OITAVA coelhinha da playboy
ou o templo  dourado de kinkakuji
ou um gato e um pato num cesto

meu avô não gostava de agosto
dizia agosto mês de desgosto
quando passava dizia agora não morro mais

Dá pra perceber que a poetisa gosta da enumeração (no primeiro terceto). Ok, um recurso. Nada contra. Drummond, por exemplo, em certa fase, usava-a à mancheia. Nele ela tinha um significado que o leitor descortina – às vezes à primeira leitura, às vezes em leituras posteriores. Mas o significado estava embutido e a enumeração ganhava pertinência. Aqui, como nos poemas citados anteriormente, e em grande parte do livro, ele é um mero adorno. E adorno nunca rendeu poesia.

Vamos a outro poema:

não consigo ler os cantos

vamos nos livrar de ezra pound?
vamos imaginar ezra pound
insano numa jaula em pisa enquanto
os americanos comiam salsichas
a pasta de amendoim na barracas
querido ezra, quem sabe o que é cadência?
vamos nos livrar de marianne moore?

Eis mais um exemplo de como não se fazer poesia: tripudiando com a voz do outro sem um porquê, e esbanjando-se na mesmice. Ninguém é obrigado a gostar de Pound nem de Moore. Mas se a voz deles é incorporada ao poema, deve-se dizer, repito, a que veio.  Veio, mais uma vez, sem pertinência alguma? Veio com a intencionalidade de um reles humor? Bem, poeta que não domina a linguagem da poesia, e acredita que os recursos presentes em manuais ou em oficinas de poesia são garantia de um bom poema, nasce predestinado ao engodo. Quer ser astuto mas está fadado ao engano. Autoengano. Engano sem fingimento é tiro no próprio pé.

Todavia, incensada por uma determinada ala da crítica de jornal, ela lança seu segundo livro: Um punho é do tamanho do útero. Na orelha, Carlito Azevedo pontua: “Já nos primeiros versos de qualquer poema seu [de Angélica Freitas], há uma atmosfera feliz e profanadora que nos convida a relativizar o gigantismo de certos sentimentos solenes que por muito tempo quiseram, e ainda hoje querem, se fazer passar pela poesia mais autêntica, pela mais sensível forma de se viver em estado poético”.

Carlito é generoso mas não é justo. Não basta malbaratar os temas (sejam eles solenes ou triviais) para chegar-se à boa poesia. Cortázar observou que uma pedra sobre a palma da mão pode render um bom texto literário. Antonio Candido há décadas e décadas nos ensina que o tratamento da palavra é o que importa em literatura. Não a grandiosidade, ou a pequenez, do tema em si.

De fato, nos primeiros versos do poema citado acima o leitor é convidado à atitude de irreverência. Isto até poderia render bons frutos. Mas ao dar continuidade à leitura ele percebe que a poetisa não dá conta do que anunciara – e que o poema prometera. Ele degenera para o surreal, ainda que a partir de fatos históricos. Esvazia-se em si mesmo. Frustra o leitor.

Ou será que Carlito Azevedo se emociona, se toca, se liga na mesmice do poema “uma mulher gorda”? Transcrevo-o:

uma mulher gorda
incomoda  muita gente
uma mulher gorda  e bêbada
incomoda  muito mais

uma mulher gorda
é uma mulher suja
uma mulher  suja
incomoda  incomoda
muito mais

uma mulher  limpa
rápido
uma  mulher limpa

Como adequar a observação do poeta-crítico ao poema acima? Nem com muito esforço. Na verdade, um poema assim nem chega a incomodar, tão banal é sua arquitetura.

A anáfora, recurso poético que consiste na repetição de um termo no início, meio ou fim de dois ou mais versos, é utilizada pela poetisa à exaustão. Tal redundância, reitero, poderia resultar em algum proveito estético. Não resulta. A taxa de informação é zero. Ou próxima do zero.

Atentem para “a mulher quer”:

a mulher quer ser amada
a mulher quer um cara rico
a mulher quer conquistar um homem
a mulher quer um homem
a mulher quer sexo
a mulher quer tanto sexo quanto o homem
a mulher quer que a preparação para o sexo aconteça lentamente
a mulher quer ser possuída
a mulher quer um macho que a lidere
a mulher quer casar
a mulher quer que o marido seja seu companheiro
a mulher quer um cavalheiro que cuide dela
a mulher quer amar os filhos,  o homem e o lar
a mulher quer conversar pra discutir a relação
a mulher quer conversa e o botafogo quer  ganhar do flamengo
a mulher quer apenas que você escute
a mulher quer algo mais do que isso, quer amor, carinho
a mulher quer segurança
a mulher quer mexer no seu e-mail
a mulher quer ter estabilidade
a mulher quer nextel
a mulher quer ter um cartão de crédito
a mulher quer tudo
a mulher quer ser valorizada e respeitada
a mulher quer se separar
a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais
a mulher quer se suicidar

Melhor: é o leitor – homem ou mulher –, ao fim do poema, quem quer se suicidar. Por quê?

Porque poesia é desautomatização. Velha lição do russo V. Chklóvski. Um semioticista que precisa ser melhor lido e compreendido. Poesia é “novidade que permanece novidade”, como apregoa Pound. Poesia “revela este mundo; cria outro”, na feliz síntese de Octavio Paz. Poesia é convergência do eixo da contiguidade sobre o da similaridade, segundo Roman Jakobson.

Poesia nada tem a ver com desejos reprimidos e viagens malucas de seus poetas e/ou leitores. Poesia não é fricote. Poesia não é playground.

A poesia de Angélica Freitas é confusão de brincadeirinhas com o politicamente correto numa tempestade de estereótipos. Ela opera uma reciclagem da dita poesia marginal. Com os mesmos enganos: acha que faz graça, que é irônica. Acha que faz intertextualidade com finalidade poética. Acha que é dona de um estilo. Acha que faz poesia com o usual. Não faz.

Seus poemas são quase todos macaqueação da prosa com fixação na anáfora. Como se este recurso garantisse qualidade ao poema.

O que Angélica Freitas faz é, no mínimo, ingênuo. Ela cismou que basta copiar frases do cotidiano mais trivial para fazer uma poesia sem solenidade. Levantou-se contra o que já era morto. Desde o Modernismo, nos idos de 22, o solene foi quebrado pelo sublime. Sem citarmos, por exemplo, Gregório de Matos, Arnaut Daniel, Aretino, John Donne, Ovídio, Horácio – e até Safo – dentre tantos outros. Angélica Freitas, repito, é mal informada.

Esta moça vem sendo louvada pela crítica de norte a sul. Tentei ver nela a “esplêndida tradição da poesia universal”, como afirma o poeta-crítico Carlito Azevedo. Só vi “tonterías”. Sua poesia não emociona. Não cheira. Nem fede.

Angélica Freitas foi publicada por uma renomada editora. Isto deveria ser sinal de qualidade. Não é. Uma grande editora também se engana. Seus livros têm tido renovadas tiragens. Isto deveria ser sinal positivo, principalmente por se tratar de poesia. Não é.

Não entendo o bafafá que seus livros têm causado. Este meu artigo, que não vê valor poético nesta poetisa, visa bater de frente com a “crítica” engabelada. Raramente chuto cachorro morto. Mas este, em questão, merece que lhe “enfie os talheres”. Faço-o com gosto. É o troco pelo desgosto de ler Angélica Freitas com todo cuidado.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Publicado pelo jornal Correio das Artes, suplemento cultural do jornal A União, de João Pessoa, que circulou dia 22 de junho de 2014, com data de abril/2014. Ano LXV, nº 2, p.32-35.

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