terça-feira, 20 de setembro de 2016

O documentário da subversão no Cariri: ‘O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto’ e a multidão exterminada



por Samuel Macêdo do Nascimento

Não sei ao certo o número de vezes que vi esse documentário e tenho a sensação de que se trata de um dos melhores filmes feitos em nossa região. Rosemberg Cariry, diretor do filme, inicia o documentário contando a história da cidade de Juazeiro do Norte e de suas figuras misteriosas: o Padre Cícero, a beata Maria de Araújo e o beato José Lourenço. A experiência do Caldeirão foi semelhante à comunidade de Canudos. As pessoas e famílias que viveram coletivamente nesse território que pertencia ao Padre Cícero foram alvo do incômodo do poder do clero, do governo da época e da elite local. O primeiro massacre aéreo do Brasil aconteceu nas terras do sul do Ceará, quando  aeronaves do governo bombardearam o sítio do Caldeirão.

O Caldeirão está localizado na chapada do Araripe, cidade do Crato, e a sua destruição, em maio de 1937, diz muito sobre a nossa construção de cidadania, de direitos e das histórias não oficiais de violências que acompanham essa e outras regiões do Brasil. Após a morte do santo popular Padre Cícero Romão Batista em 1934, as forças locais se unem para apagar os registros dessa experiência coletiva e subversiva. Os testemunhos dos sobreviventes e das pessoas envolvidas no massacre conduzem o filme. O Caldeirão passa a (re)existir com esses relatos presentes no filme cinquenta anos depois do massacre, em 1987.

A estética do documentário dirigido por Rosemberg Cariry está a todo momento trazendo os pedaços das vidas exterminadas no Caldeirão. Cenas com ex-votos espalhados nas areias da praia, e as próprias imagens dos créditos inicias e finais trazem esses pedaços de corpos que se perderam nos solos da comunidade. A montagem do filme nos conecta a dois momentos importantes: o período da ditadura Vargas, quando a comunidade é exterminada; e o ano em que o filme é produzido que se sintoniza com o início da redemocratização do Brasil, quando as pautas dos movimentos das pessoas que não tinham acesso a terra pressionavam a política nacional.

O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto tem trilha sonora que mistura os ritmos dos grupos da cultural popular local, como bandas de pífano, junto com vozes de cantores cearenses como a cantora Téti, integrante do movimento musical conhecido como Pessoal do Ceará. A história do Caldeirão trazida pela primeira vez através do cinema, acabou sendo alvo do interesse de pesquisas sobre esse massacre exterminado pela historiografia oficial. O filme é um dos meus temas da pesquisa de mestrado, inclusive.

Sabemos que Juazeiro foi construída por multidões que saem de várias regiões do Nordeste brasileiro, principalmente, e o Caldeirão é criado e pensado a partir dessa mesma lógica de diáspora. Multidões que perderam suas terras e seus alimentos pelos fenômenos das secas ou das desigualdades sociais, encontraram esperança nessa comunidade liderada por José Lourenço, beato negro e pobre que seguia o padre Cícero. Porém, a ameaça comunista que assombrava aquele período precisava ser extinta nos países periféricos, em muitos países da América Latina, inclusive. O filme ganha seu caráter máximo de potência quando conecta os conflitos políticos do século XX que se caracterizou por seu número imensurável de massacres, como holocausto, extermínio de povos desterritorializados, entre outros.
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Samuel Macêdo do Nascimento é formado em Comunicação Social (Jornalismo), Mestre em Cultura e Sociedade e membro do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 32, de junho de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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