sábado, 20 de agosto de 2016
Ecos que atravessam os séculos
por Sued Carvalho
O passado calado pelo presente. Como as vozes das antigas civilizações que habitaram o continente Africano se perderam através dos tempos? O senegalês Ousmane Sembene procura responder a esta inquietante pergunta por meio do alegórico Ceddo (1977), seu filme mais ousado, segundo os críticos que lhe deram merecida atenção. Nas discussões do grupo Sétima, em fins de 2015, o Elvis Pinheiro levantou uma questão que me preocupou: a falta de diretores africanos sendo analisados na revista. Imediatamente esse filme me veio à mente, o vi em meados de 2014, tendo-o achado de uma qualidade tremenda. Admito não ser profunda conhecedora da obra de Sembene, mas sou admiradora de Ceddo.
O filme nos faz voltar quatrocentos anos no tempo, para o reino dos Ceddo, no Senegal, que recentemente havia permitido que exploradores europeus e islâmicos entrassem em suas fronteiras. Há uma igreja cristã e negociantes de escravos ali, o governo do Rei Demba War, recém convertido ao Islã, apoia os «comerciantes». Os conselheiros do monarca são sacerdotes maometanos e passam a exercer mais e mais influência sobre a vida e os hábitos do povo Ceddo, militando pelo esquecimento de seus costumes. Os nativos estão amedrontados com tais medidas, porém como sempre os músculos da resistência não passiva se movimentam e a Princesa Dior, filha de Demba War é sequestrada por um soldado insatisfeito, iniciando assim uma guerra civil no reino Ceddo, que colocará os lugares de poder em xeque.
O filme é, como foi dito acima, uma alegoria. O diretor levou ao microscópio as diversas imposições ideológicas sofridas pelos africanos no decorrer dos séculos, os ceddo podem não ser senegaleses, podem ser somalis, sudaneses, angolanos e, quem sabe, índios tupi, a mensagem seria a mesma, a imposição: os costumes jogados no esquecimento ou obrigados a se reformular pela força do invasor. Ceddo não é, necessariamente, sobre os ceddo, é sobre povos colonizados. Sembene nos leva para longe dos leões, das zebras e das girafas, único interesse da indústria cultural na África, e nos entrega uma interessante e sincera metáfora histórica, capaz de captar os ecos dos grandes reinos africanos em sua luta pela sobrevivência, colocados de lado pela historiografia oficial.
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Sued Carvalho é escritora e atualmente estuda História na Universidade Regional do Cariri (URCA).
Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 30, de abril de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.
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