segunda-feira, 23 de maio de 2016

‘A Beata Maria de Araújo’, por Padre Azarias Sobreira



Compartilhamos texto sobre a Beata Maria de Araújo, escrito pelo Padre Azarias Sobreira e publicado no seu clássico livro O Patriarca de Juazeiro, lançado originalmente em 1969.
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A Beata Maria de Araújo

“Rosto algo assim assimétrico, cor bastante escura e estatura abaixo de mediana, eis, em suas linhas gerais, o que de pronto se notava nessa filha de Juazeiro do Norte. Não despertava a atenção a não ser pela simplicidade de maneiras, boa educação doméstica, fácil inteligência das coisas, apesar de analfabeta.

Havendo bem cedo perdido os pais, foi morar, ainda menina, na casa do Padre Cícero onde se manteve até a condenação dos fatos ditos portentosos e dos quais ela havia sido protagonista.. De compleição débil e doentia. Depois de ter sofrido meningite infantil, mais geralmente conhecida pelo nome de espasmo, ficou sendo vítima de ataques que se diriam epiléticos e que, a cada nova investida, deixavam-na sem fala, estendida no chão, devendo-se notar que existe uma tradição oral bem apagada de ela haver cuspido sangue.

Quase tudo isto nos é confirmado pelo próprio Padre Cícero, num documento que ainda hoje se conserva na Secretaria do Bispado do Crato, documento em que o Bispo Dom Joaquim lhe pedira que respondesse a determinados quesitos relacionados com a pessoa da referida beata. Do exposto se pode concluir que nela existiam sintomas bem aptos a fazer luz quanto a uma explicação absolutamente natural dos fenômenos que posteriormente nela se manifestaram e que tanto deram a falar pelos sertões brasileiros.

De quanto acabamos de dizer, cabe-nos o direito de admitir que é assaz discutível a hipótese de Maria de Araújo haver sido apanhada em embuste, valendo-se de alguma matéria colorante parra dar a impressão de sangue verdadeiro nas hóstias consagradas por ela recebidas. O sangue era um fato manifesto e foi atestado por diversas testemunhas de probidade reconhecida. Além do mais, apresentava bolhas, coagulava, exalava odor característico, ocasionava enjoo de estômago ao mesmo Padre Cícero; e às vezes, sobretudo nos primeiros tempos, era visto em tamanha quantidade que enchia a palma da mão do sobredito sacerdote. Da primeira vez em que foi observado em público, molhou a murça da própria beata e ainda salpicou abundantemente a toalha da mesa da comunhão.

Dê-se a tais ocorrências a interpretação que se der, não é lícito negar que em Juazeiro do Norte ocorreram, na pessoa de Maria de Araújo, fatos surpreendentes e dignos de meticuloso exame. Além do sangue surgido nas partículas consagradas a ela distribuídas, vez por outra parecia arrebatada em êxtase. Também nela se viram, de raro em raro, os tradicionais estigmas da paixão do Salvador: umas como listas de sangue escorrendo na fronte, das mãos, dos pés e dizem que igualmente do coração.

A tudo isto se reúna uma vida de jejum, oração e trabalho humilde; reúna-se-lhe um grande recolhimento de espírito, a circunspecção nas palavras, a serenidade nos momentos de contradição, e ter-se-á rol suficiente para explicar a comoção produzida em torno da mencionada serva de Deus. Acima de tudo, desperta-me especial reflexão o silêncio e conformidade em que ela se refugiou depois que lhe comunicaram o pronunciamento condenatório do Santo Ofício, em Roma. Em lugar de fazer comentários com o fim de justificar-se, absteve-se de tocar nesse assunto, sumiu-se no interior de sua nova morada, quarteirão e meio distante da igreja, e, entregue aos trabalhos mais rudes na companhia de duas ou três mocinhas que foram morar com ela, trabalhos esses donde retirava o pão e o vestuário, assim viveu por mais duas décadas, até o dia dezessete de janeiro de 1914, quando veio a falecer. Desapareceu das vistas do mundo por tal forma que dentro em breve ninguém dava por sua pessoa, como se realmente já fosse com Deus.

Embora morássemos apenas a uns quatrocentos metros dela, só me lembro de tê-la visto, em menino, duas ou três vezes, quando tive de entrar em sua casinha, no afã de pegar a bola com que brincávamos e que sucedia correr para lá. Nessas ocasiões, sempre a vi sentada, fiando uma pasta de algodão, sempre rodeada das jovens de que fiz menção. Depois, já adolescente, vi-a em casa de um nosso vizinho cuja consorte era caridosíssima e que, tendo sabido que Maria de Araújo fora acometida de dois ou três panarícios que muito a faziam sofrer, para a própria residência a conduzira a fim de proporcionar-lhe algum alívio. Vi-a pela derradeira vez no dia 15 de janeiro de 1914, antevéspera de sua morte, quando, por mera casualidade, com ela deparei em casa de D. Bezinha Martins, profundamente abatida e ofegante, o fôlego cortado pela dispneia que a consumia. Ao pé dela, apenas a dona daquele lar.

Se, de acordo com os dizeres das Cartas Pastorais de Dom Joaquim sobre os fatos de Juazeiro, Maria de Araújo usou meios inconfessáveis para despistar a impossibilidade de operar prodígios que dela exigiam, como sinais de que com ela estivesse o Altíssimo, daí não me parece razoável tirar a conclusão de que fosse essa a sua norma de proceder e, portanto, a característica dos carismas que nela se tinham revelado. Do célebre episódio de Antioquia, do qual nos dá conta o apóstolo São Paulo, e a cujo ensejo vemos São Pedro publicamente repreendido por aquele seu companheiro de apostolado, não nos seria lícito deduzir senão que o Príncipe dos Apóstolos cometera um ato de incoerência; e mais nada.

Pelo fato de Pedro haver negado o Divino Mestre e assegurado por juramento que jamais o tinha visto, não pode ser julgado somente à luz dessa sua defecção. Desde que deplorou amargamente semelhante descaída, foi solonemente investido nas excelsas funções de Chefe da Igreja que o Salvador lhe tinha prometido.

Aliás, é fora de contestação que Monsenhor Antônio Alexandrino de Alencar que chefiou a segunda Comissão Diocesana incumbida de efetuar novo exame na pessoa de Maria de Araújo, ao despedir-se de seus paroquianos em Juazeiro por ter de ir reger a freguesia de Picos, no Estado do Piauí, da tribuna sagrada pediu desculpas aos juazeirenses, alegando que assumira atitude de tanto rigor porque a isso fora constrangido pelo seu Superior Hierárquico.

Feitas estas ressalvas, temos o indeclinável dever de confessar que, ainda na hipótese de em Maria de Araújo se terem passado coisas deveras maravilhosas e de cunho sobrenatural, o que falta ser demonstrado, nenhum dos carismas a ela atribuídos se registrou depois. E essa interrupção nos merece tanto maiores motivos de reconsideração quanto é certo, conforme atrás dissemos, ter ela ainda vivido por dilatados anos. Comungando pelo menos no tempo pascal, não há vestígio de posteriormente ter entrado em êxtase, ostentado sinais de estigmatização e ainda menos exibido sequer manchas de sangue no ato da comunhão por ela recebida.

A tamanha distância daqueles sucessos, não nos move a pretensão de defender a tese vencida de que o sangue nela aparecido fosse o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo ou reafirmar a nossa convicção de que realmente se tratava de sangue verdadeiro e não anilina. Isto mesmo reconheceram o Bispo Diocesano, os venerandos sacerdotes Glicério da Costa Lobo e Francisco Ferreira Antero, bem como os médicos que, em nome da ciência do seu tempo, figuraram na Comissão de Sindicância.

Quanto à afirmação feita por uma testemunha que o Diocesano em tela diz ser qualificada, mas que se recusara a consentir que se lhe revelasse a identidade, assiste-nos o direito de pôr em dúvida a veracidade do que afirmou.

Que afirmação terá sido essa? A de que vira Maria de Araújo cuspir sangue antes de comungar. Também eram pessoas altamente qualificadas em Jerusalém as que, de acordo com a narração evangélica, perversamee acusavam o Divino Mestre durantes as horas de sua paixão, dizendo d’Ele inverdades as mais clamorosas, na firme persuasão de assim prestarem serviço a Deus.

Estribado numa declaração escrita do Padre Cícero de que com o Salvador tinha dialogado, certa vez, na capela do SS. Sacramento, Mons. Manuel Cândido dos Santos, Secretário da segunda Comissão de Sindicância, assim falou ao Capelão perante numerosas pessoas: — Para eu crer nisso, era preciso que Jesus Cristo agora mesmo nos aparecesse e reafirmasse essas mesmas coisas. O tom de azedume bem define a exaltação dos espíritos de ambos os lados.

Bem sei que o cotejo a seguir é claudicante, mas vou esboçá-lo a título de ilustração no caso em apreço. Serei breve.

No capítulo IV, vv. 14 a 31 de S. Lucas, lemos que semelhante exigência foi feita pelos habitantes de Nazaré quando lá esteve Jesus a passeio, depois de haver iniciado sua vida missionária. E é o próprio evangelista que nos dá conta da resposta que receberam. Remeto ao leitor tópico inculcado, por puro amor à brevidade.

Em Jerusalém, nas imediações da Semana da Paixão, uma luzida representação de judeus pediu ao Salvador um sinal do céu, como garantia de que a doutrina por ele pregada vinha de Deus. E qual foi a divina reação a semelhante proposta? Reagiu simplesmente desconversando da seguinte forma: ‘— Esta geração perversa exige um sinal no céu, mas só lhe será dado o sinal do projeta Jonas’. Sabemos hoje o que significava aquela enigmática expressão e nela descobrimos inefável conteúdo; mas é bem discutível que os cavilosos inquisidores hajam-lhe percebido o alcance, saindo dali positivamente decepcionados.

Mais uma vez, quanto é difícil penetrar nos escaninhos das consciências e formar um juízo seguro das intenções que nos animam!”
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Padre Azarias Sobreira, no livro O Patriarca de Juazeiro (Coleção Centenário 1911-2011 - Fortaleza: Edições UFC, 2011). Fac-símile da 2ª edição.


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