quarta-feira, 4 de novembro de 2015
Um Estranho no Lago e outros na plateia
por Elvis Pinheiro
O título deste meu ensaio é provocativo, mas com o continuar da leitura verão que não é agressivo.
Exibi na noite de segunda-feira, 19 de janeiro de 2015, o filme Um estranho no lago, do diretor francês Alain Guiraudie. Ganhador do César de Melhor Ator Revelação para Pierre Deladonchamps, o Franck, e eleito pelos críticos do “Cahiers du Cinéma” como o filme do ano de 2013, desbancando o ganhador da Palma de Ouro, Azul é a cor mais quente, que na lista da revista francesa está em terceiro lugar, logo depois de Spring Breakers: Garotas Perigosas, de Harmony Korine.
De-quantas-maneiras-um-filme-pode-ser-visto talvez seja uma das formas de medir a qualidade e o valor do mesmo. Se percebemos que ele pode ser visto de variadas maneiras, se ele cresce em diferentes perspectivas, vamos observando que estamos diante de uma obra de arte indubitavelmente. Se ao contrário, ele não nos surpreende e apresenta-se de uma única forma, e esta seja simplória e fácil demais, sabemos que estamos assistindo a algo banal e certamente esquecível.
A razão de algumas pessoas abandonarem a sessão é a mesma que fez com que se mantivesse uma outra parte do público. Os que saíram e alguns dos que permaneceram viram apenas e tão somente homens nus e seminus à beira de um lago em ativa situação de caça para encontros sexuais explícitos no bosque que contorna a praia do lugar. Visto assim, estamos diante de um pornô gay trash com direito a suspense e mortes violentas.
Para os amantes de um bom cinema realista/naturalista com alta precisão nos detalhes de cena, na construção dos tipos, na ambientação e nos movimentos de câmera e fotografia, começamos a perceber a obra-prima. E ainda não é isso o que me seduz no filme.
Apresentação dos personagens numa breve sinopse: Franck, jovem de aspecto masculino e saudável chega com seu carro no início do verão, num lago bastante frequentado por homens de diferentes idades e estilos, mas majoritariamente por homossexuais. Depois de jogar-se nas águas do lago, resolve aproximar-se de Henri, isolado na margem esquerda, à sombra de uma árvore, lenhador gordinho e de meia idade com quem começa uma boa amizade. Desta parte da praia, Franck vê o belo e misterioso Michel, com seu bigode ao gosto dos anos 70, que parte para o bosque. Michel é forte e másculo, mas está sempre acompanhado de Pascal, com quem está transando até aquele momento. Num fim de uma daquelas tardes, Franck flagra Michel afogando no lado o seu amante, Pascal. Nos dias seguintes, a movimentação do Lago continua a mesma, apesar do carro e dos objetos de uso pessoal de Pascal permanecerem abandonados, até que o corpo é encontrado e um Detetive começa a fazer perguntas aos frequentadores do lago. Enquanto isso, cresce tanto a amizade entre Henri e Franck, quanto o tórrido relacionamento deste com Michel!
Pra quem está acostumado com histórias gays de homens jovens e belos que estão preocupados com a maneira como poderão ficar juntos numa sociedade que os impede de serem felizes apesar do amor entre eles ser puro e grandioso, nestes casos estamos diante de obras do Romantismo. A obra de Alain Guiraudie pertence ao Realismo/Naturalismo e, deste modo, não sabemos nada da vida destes personagens para além do ambiente do lago, o que seria o equivalente do Cortiço na obra de Aluísio Azevedo.
Neste ambiente de selva, os personagens se assemelham a leopardos tomando banho de sol no período de acasalamento e guiados unicamente por instinto, desejo e os ditames da natureza. Em breves conversas, questões são levantadas e funcionam como facas para o espectador atento: Henri para Franck: “você não transa com mulheres, não tem namorada? Mas você parece um homem normal e nunca vi um homem como você que fica com homens, que também não tivesse uma namorada”. O Detetive para Franck: “um de vocês foi morto e ficou abandonado três dias até lhe acharem o corpo e o assassino pode fazer mal a outros sem que pareçam se importar com isso”.
Que tipos de relações construídas na beleza, na juventude e no sexo, sem maiores comprometimentos, desconhecidas as origens e sem laços sólidos de afetividade e lealdade estão sendo mantidos continuamente? Uma selva escura e sombria se fecha ao nosso redor e podemos estar perdidos sem Amor e com um Desejo assassino à nossa espreita.
Comentaram que o filme não faz lembrar as obras majestosas de Alfred Hitchcock
O Alfred Hitchcock é majestoso, sem dúvidas. Ele cultuava o belo em seus filmes: as mulheres e os homens se nos apresentavam impecavelmente. Eram os mais belos numa sociedade “com roupas”. No filme do Alain, os protagonistas também são os mais belos, “sem roupas”.
Em Hitchcock dois aspectos eram levados em conta na construção de suas narrativas, a motivação e a sexualidade. Em cada filme, o desejo e as motivações psicóticas levavam ao entrelaçamento entre os personagens. Em Um Estranho no Lago, estes dois fatores estão fortemente presentes: os tipos se movimentam enquanto voyeurs, psicopatas, exibicionistas e viciados. Hitch fazia uso de macguffins, que eram elementos que estavam na trama para desencadear toda a história, mas que eram essenciais à trama apenas para justificar o enredo. Em Psicose, o macguffin era a mala de dinheiro que a secretária rouba e a faz fugir até parar no Hotel Bates... No filme de Guiraudie, o macguffin é o Verão. Se não fosse isso, aqueles homens não poderiam estar durante todo o dia às margens do lago, especificamente.
E o mais importante: nas tramas de Hitchcock, toda a primeira parte do filme é para estabelecer a rotina dos personagens e construir padrões que na situação seguinte nos deixarão em suspense. A conversa sobre bagres gigantes que possam haver no Lago já estabeleceu certa tensão no início da trama, por exemplo. Quando Franck testemunha o crime, toda a sequência remete-nos a Janela Indiscreta, numa paródia gay na qual também o assassino se percebe observado. Todas as demais cenas vão estabelecendo o perigo iminente que o protagonista está correndo. Não sei quem disse antes de mim, porque eu ainda não tinha escrito sobre isso antes, que o filme do Alain Guiraudie lembrava os filmes do Alfred Hitchcock, mas logo me veio toda essa argumentação para encontrar, sim, as semelhanças.
Diretores contemporâneos se tornam geniais não quando copiam, fazendo tudo exatamente igual aos seus mestres, mas quando atualizam a sua técnica colocando-a em ambientes que eles não ousavam ou não lhes seria pertinente. Por isso percebemos Max Ophüs nos filmes do Kubrick, Bergman nos filmes ora do Tarkovsky, ora do Woody Allen e até em um dos Almodóvar e percebemos também Tarkovsky em Sukurov ou o Kubrick de 2001 em Sob A Pele de Jonathan Glazer. E a lista seria infinita... Grandes novos filmes sempre renderam homenagens e serão devedores de grandes diretores. É apenas dessa maneira que se pode dizer que Um Estranho no Lago pode nos fazer lembrar Alfred Hitchcock.
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Elvis Pinheiro é editor da Revista Sétima e professor. Desde 2003 é Mediador de Cinema no Cariri cearense.
Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 22, de julho de 2015), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.
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