quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Geografia aérea. Poemas apócrifos. Totem

por Amador Ribeiro Neto

Geografia aérea (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014), de Manoel Ricardo de Lima, é um excelente exemplo de como a poesia pode extrair da coloquialidade o melhor da expressão poética. Neste livro, a língua do dia-a-dia aparece muito longe da mesmice chata e cansativa que caracteriza grande parte da produção de nossa poesia hoje. Poesia esta que, pelas semelhanças com a poesia marginal, dos anos 70, venho chamando de poesia neomarginal. Afinal, a pretensa espontaneidade de ambas só compromete a novidade, o inesperado, a surpresa que toda linguagem poética, pra valer, traz em si.

Em Manuel Ricardo de Lima, cada poema é o revelar do novo sobre o óbvio. Algo que certamente faria a felicidade do russo Chklóvski, se lhe fosse dado ler Geografia aérea. Como não lhe é, aproveite o leitor de hoje. “Falas inacabadas” é uma sequência de 13 poemas, todos com a feliz resolução poética do primeiro deles: “recolhemos, em cada pedaço de fala / e de silêncio / a paráfrase dos cantos da casa, / inteira // ela fica assim / e dorme / sobre o pano de escorrer o café o chá preto a erva mate // ela dorme no mesmo lugar em que um mendigo dorme / novamente, quando consegue // ela e todos os seus objetos // as palavras que usa / muitas vezes / não têm necessidade alguma”. Um livro arrebatador.

Poemas apócrifos de Paul Valéry (Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2014), de Márcio-André, estrutura-se na brincadeira borgeana da autoria da obra. A partir de engenhosa situação, que cabe ao leitor descobrir, o poeta monta um xadrez de peças que dançam num tabuleiro bem desenhado. Todas as peças têm destino previamente marcado. Mas podem valer-se de um vastíssimo número de variáveis. Tudo fica claro na explicação, em nota introdutória ao poema “Joia”. Por motivo de respeito à espacialização do poema, não há como citá-lo aqui. Fica a sugestão de sua leitura. Bem como de todo o livro. Que é feito de poesia de alta voltagem.

A linguagem espacializada é uma das determinantes deste volume, que se vale de versos formalmente maiakovskianos, num vaivém pessoano. Enfim, um livro que se lê na beleza da poesia em si. E na beleza da poesia em diálogo com os mais significativos poetas que experienciam com a linguagem. Destaco o apuro formal das seções “Biblioteca-tangerina” e “Campos semânticos”. Seções, ou livros, como prefere o poeta na introdução intitulada “Breve relato quase esclarecedor”. Desde aí, a incitação ao jogo e à cumplicidade do leitor. E, ao final do livro, o golpe quase fatal: “É possível que Paul Valéry não tenha existido. Neste caso – e para todos os outros efeitos –, os poemas deste volume poderiam ter sido escritos por mim”. Inter e intratexto em paródia e ironia. Uma possível entrada no livro pode ser por este fragmento, da primeira seção: “o desfibrilador é antes relíquia verbal / quer um aparato do esqueleto: / o tempo na palavra / tudo que era primeiro moveu-se no verbo / mesmo a bomba cardíaca / e seus vasos sanguíneos / é no verbo que as coisas despertam / e a língua-que-não-diz / o silêncio / contrai cor ao átomo / confere física aos elementos / e falha a vida ali por diante:”.

Totem (São Paulo: Editora Cultura e Barbárie, 2014), de André Vallias, é um livrobjeto formado por 40 pranchas coloridas e soltas, contendo o nome de 222 povos indígenas. Os nomes estão dispostos em 26 estrofes, num jogo onomatopaico que remete ao canto totêmico. Cada prancha pode ser lida em qualquer sequência, sem prejudicar em nada o resultado final da leitura. Mesmo porque esta obra foi produzida para ser lida, vista e cantada com a cumplicidade coautoral do leitor. A ideia deste livro originou-se do movimento que ganhou, em 2014, o Facebook. Internautas colocavam, ao lado de seu nome, “sou Guarani Kaiowá”. Estava lançado o protesto de solidariedade a estes índios, ameaçados de expulsão de suas terras. O poeta chama a atenção para este fato histórico. E produz uma poesia que promove o diálogo intersemiótico entre os códigos impresso e digital.

Cito as estrofes iniciais: “sou guarani kaiaowá / munduruku, kadiwéu / arapium, pankará / xokó, tapuio, xeréu // yanomami, asurini / cinta larga, kayapó / waimiri atroari / tariana, pataxó”. Enfim, um livro para “ouviver” e “vler”. Tudo com vastíssimas beleza e leveza. Como deve ser um totem indígena na era digital. Como é. Eis o poema.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 30 de outubro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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