por Ailton Jesus
“Bathsheba Everdene. Bathsheba. O nome sempre me soou estranho. Não gosto de ouvi-lo dito em voz alta. Meus pais morreram quando eu era muito jovem, portanto, não há a quem perguntar de onde ele vem. Cresci acostumada a estar sozinha. Há quem diga que acostumada demais. Independente demais”.
Essas são as palavras da protagonista Bathsheba Everdene (Carey Mulligan), que dão início à terceira adaptação para a tela do livro Far from the madding crowd (Thomas Hardy, 1874). No Brasil, o título do filme é Longe deste insensato mundo. Nele, Thomas Vinterberg, também diretor de A caça, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2012, nos apresenta Bathsheba com todas suas características explicitadas: adentra sem medo a escuridão e o silêncio enquanto dialoga consigo, em contato com a natureza.
Bathsheba é uma camponesa que herda de seu falecido tio uma fazenda e toma com garra todas as responsabilidades advindas com a posse. No entanto, não são as burocracias e a descrença em uma mulher à frente dos negócios numa Inglaterra Vitoriana que desestabilizam a jovem, são as questões do coração. A vida acontece e coloca Bathsheba numa encruzilhada onde seus sentimentos fervem e qualquer certeza sobre qual caminho tomar é brisa que passa entre as cercas na vastidão dos planos abertos. Dispostos a ganhar seu coração – ou não – estão três personagens: Gabriel Oak (Matthias Schoenaerts), pastor de ovelhas que após perder seu rebanho torna-se empregado de Bathsheba; William Boldwood (Michael Sheen), vizinho da protagonista, fazendeiro rico, honesto e infeliz no amor; e o sargento Frank Troy (Tom Sturridge), intenso e sedutor, capaz de virar a cabeça de qualquer mulher.
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Quando se está assistindo a um filme, nos primeiros minutos ainda temos consciência do nosso espaço, da coluna recostada sobre a poltrona, da tela à nossa frente. Um bom filme conseguirá, após esse primeiro contato, nos levar para dentro de seu mundo e tudo que é alheio a tal mundo perde sua importância até que rolem os créditos.
Pois bem, após imerso em Longe deste insensato mundo, três pequenos trechos me chamaram a atenção com mais força, um de maneira negativa e dois de maneira positiva.
1. O pecado no rosto de Bathshebba
Mr. Boldwood convida Bathsheba para conhecer sua casa e, enquanto ela admira o interior do grande salão, ele a observa. A câmera então enquadra o rosto da moça e ainda aproxima, no intuito de repararmos na beleza de seu rosto através dos olhos de Boldwood. Perco o foco, e não pela beleza inegável de Carey Mulligan em trajes de época, mas por ver um recurso cinematográfico gasto que, apesar de eficiente, talvez devesse ter sido guardado numa das gavetas do casarão e retirado apenas quando seu uso fosse absolutamente necessário. Quando Vinterberg resolve lançar mão de um corte brusco que me leva diretamente ao rosto de uma personagem estonteante, reforçado por um zoom que em nada dialoga com a sutileza da conversa desenvolvida pelos dois, para mostrar que o interesse de um homem de bem por ela cresce, ele atavia em previsibilidade uma história que tudo tem para transgredir o romance comum. Vinterberg desloca a atenção do enredo para o recurso cinematográfico e o filme perde qualidade com isso.
2. Sombras da cadeia
O filme é cheio de paisagens verdes e casarões, cujos salões, quando preenchidos por apenas duas pessoas, parecem ainda maiores. A Inglaterra parece imensa aos olhos do diretor. Um dos melhores momentos do filme é justamente quando Vinterberg resolve fazer o caminho inverso. Quem já assistiu ao O homem dos olhos esbugalhados (Stranger on the third floor, Boris Ingster, 1940) deve se lembrar da magnífica cadeia criada apenas com um banco ocupado por uma figura encurvada pelo desespero e um salão sem fim com as sombras das grades denunciando o espaço de confinamento. Em Longe deste insensato mundo, a prisão de um personagem é feita apenas com um banco de madeira, uma parede, uma sombra e um corte que contrapõe o personagem a uma árvore a perecer no inverno. Quando Vinterberg retira todos os adornos e deixa a tela limpa, preenchida apenas pelo essencial, seu filme cresce.
3. O silêncio da protagonista
A história se aproxima do fim e decisões são tomadas pela pressão do destino. Gabriel já havia deixado claro que não esperaria para sempre, e Bathsheba só percebe o tamanho dessa verdade em sua vida quando não há mais tempo para pensar e vai a seu encontro na tentativa de convencê-lo a ficar. Palavras são trocadas e um beijo esperado desde o início do filme finalmente acontece. Então, Bathsheba é deixada sozinha na tela, o verde mais bonito ao seu redor e o sol contra seu rosto. Ela enxuga uma lágrima com a mão esquerda e por sete segundos intermináveis permanece ali, em silêncio, talvez tão absorta quanto eu a observá-la, com uma música ao fundo que triunfa em ambiguidade. São sete segundos preciosos onde nada é certo e o desejo ingênuo de um final feliz oscila em corda bamba. Sete segundos que acontecem antes do fim do filme e que são mais importantes que o final em si. Vinterberg está de parabéns.
Feitas as devidas considerações, só posso concluir que o filme é maravilhoso. Não esperava menos de Vinterberg, do elenco - que me instigou a assistir o filme - e elogiaria também Thomas Hardy, não fosse o fato de ainda não ter tido acesso a sua obra.
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Ailton Jesus: estudante de Engenharia de Materiais. Por obra do destino também é ator, quando sobra tempo, músico, e usa o cinema como ferramenta de autoconhecimento.
Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 38, de dezembro de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.
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