quarta-feira, 5 de julho de 2017
‘O Leitor’, filme de Stephen Daldry (2008): resenha crítica
por Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
O Leitor. Direção de Stephen Daldry. Produção: Anthony Minghella, Sydney Pollack, Donna Gigliotti e Redmond Morris. Elenco: Kate Winslet, Ralph Fiennes, David Kross. Estados Unidos: 2008. Filme (123 min), DVD.
No filme O Leitor (2008), de Stephen Daldry – que rendeu a Kate Winslet, vivendo a personagem Hanna Schmitz, os mais importantes prêmios cinematográficos de 2009 –, uma personagem feminina é julgada e condenada por seus crimes contra a comunidade judaica. O enredo conduz-nos a acompanhar o drama desta personagem e compreender que ela, quando em Auschwitz, foi condicionada a cumprir ordens sem pensar sobre seus atos, muito menos questioná-los. Este filme é baseado na obra de mesmo título do escritor alemão Bernhard Schlink, publicada em 1995.
A propósito do enredo, O Leitor é constituído por flashbacks que retomam a história de Michael Berg e sua relação amorosa com a personagem Hanna Schmitz, ocorrida no verão de 1958. Entre leituras da Odisseia, de Homero, e d’A dama do cachorrinho, de Tchekhov, Hanna e Michael vivenciam uma relação afetiva que os aproximam intensamente, até que Hanna, após ser promovida em seu local de trabalho, desaparece sem informá-lo de seu paradeiro.
Michael havia conhecido Hanna aos quinze anos, quando ela lhe prestou auxílio por ocasião de um problema de saúde. Apesar da diferença de idade, eles passam a viver uma relação afetiva que representa para Michael a descoberta do amor e de sua sexualidade. Com o desaparecimento de Hanna, Michael retoma sua vida e entra para a faculdade de Direito, ocasião em que conhece uma colega de curso com quem tem uma filha. Neste mesmo período, durante um estágio num tribunal, ele é instigado por seu professor a participar do julgamento de ex-guardas dos campos de concentração de Auschwitz, que seriam julgadas por terem participado da «marcha da morte», em 1944, e por terem sido responsáveis, numa igreja da Cracóvia, pela morte de 300 judias que foram incendiadas.
Michael reencontra Hanna, sua antiga amante, entre as mulheres que estavam no banco dos réus. Somos informados de que Hanna, ao escolher as mulheres que iriam morrer 22no campo de concentração, optava pelas mais jovens, aparentemente as de aspecto doentio e frágil, a quem ela protegia e para as quais ela pedia que realizassem leituras. Ao conhecer Michael, foi exatamente assim que Hanna procedeu: em seu primeiro contato com o rapaz ela o auxiliou, o protegeu e, após o estreitamento da relação, ela pedia que ele também realizasse leituras.
No julgamento, a acusação mais grave recai sobre Hanna, que tinha sido uma mera guarda, mas que na ocasião é acusada de estar no comando do grupo responsável pela morte das 300 judias incendiadas na igreja. Ela é acusada, neste caso, de ter escrito o relatório que comprovaria sua participação no comando da ação e, consequentemente, de ser responsável, mais que as demais, de exterminar as mulheres.
As demais acusadas são condenadas a quatro anos e seis meses de prisão, mas Hanna, que assume a autoria do relatório, é condenada à prisão perpétua. Michael, no entanto, detém uma informação que poderia salvá-la da acusação. Esta informação, porém, é um segredo que Hanna não quer revelar a ponto de submeter-se à punição para mantê-lo escondido. Isto leva Michael a passar por uma severa crise moral. O que fazer: 1) permitir que Hanna se entregue à prisão perpétua, mas ser fiel a ela e assegurar-lhe que seu segredo será resguardado, ou 2) revelar seu segredo ao tribunal e, assim, libertá-la da prisão perpétua, mesmo que isto contrarie seu desejo e atente, de algum modo, contra sua dignidade?
Michael opta, como podemos constatar, pelo silêncio. Ele respeita sua antiga amante, aceita sua decisão de não relutar ante a condenação e retoma sua vida. Isto coaduna com o que Hanna diz, em determinada ocasião: «Não importa o que sentimos, mas o que fazemos». Michael sofre com a ideia de que, para ser fiel ao desejo de sua ex-amante, se viu obrigado a silenciar quando seu testemunho poderia salvá-la.
Alguns anos após, Michael decide gravar fitas em que ele realiza leituras e as envia para Hanna, que tenta manter contato com Michael, em 1976, porém não recebe resposta. Em 1988, quando Hanna consegue a concessão para sair do presídio, e Michael é informado de que ela será liberta, há um reencontro entre eles – talvez seja uma das cenas mais pungentes do filme. Ela constata que seu grande amor não é mais o mesmo. Sua condição de ex-presidiária, sua velhice e seu crime representavam barreiras intransponíveis entre ela e o amado, que decide auxiliá-la em sua tentativa de retomar a vida, mas ela realiza um ato desesperado antes de sair do presídio.
Hanna pede, em dado momento, que Michael entregue um dinheiro, que ela guarda numa lata velha, às sobreviventes do incêndio da igreja. Ele encontra-se com uma delas, entretanto esta aceita apenas a lata e recusa o dinheiro. Quando Michael pergunta se poderia utilizar o dinheiro para alguma entidade direcionada à comunidade judaica, ela afirma, em tom arrogante e magoado, revestido de lembranças amargas e de sofrimento, que ele faça o que quiser com o dinheiro, e que judeus nunca precisaram de auxílios como os que ele propõe.
Hanna é uma personagem densa. Talvez a mais complexa das personagens a que Kate Winslet emprestou seu talento. Por trás da ação monstruosa que a fez partícipe do extermínio dos mais de seis milhões de judeus, em campos nazistas, acontecimento histórico que não pode ser esquecido, e repetido, há uma mulher que traz um limite que a torna tão vulnerável quanto fragilizada.
Para manter seu segredo, ela perde o amor de sua vida, é condenada à prisão perpétua e é humilhada pela filha da judia que ela, no passado, quase exterminou. Hanna é uma personagem contida, independente e solitária. Vivencia, sem crises morais, um envolvimento afetivo-amoroso com um rapaz mais jovem – na cena do restaurante ela é confundida com a mãe dele. Ela traz em si, todavia, sentimentos de culpa que a tornam infeliz – a cena da igreja, em que ela observa crianças a cantar, remete-a ao crime cometido, por isto o choro incontido cuja motivação Michael desconhece.
Além disso, ela é uma personagem cujo caráter prático, racional, faz com que ela renuncie ao amor e à liberdade para que, desse modo, seja resguardado aquilo que mais a torna vulnerável. Seu segredo parece-lhe algo vergonhoso demais para que ela possa assumir para si, e para o mundo, sem que isto a destrua em sua dignidade.
Quanto ao trabalho no campo nazista, Hanna interpela um dos advogados que a acusa perguntando-lhe sobre o que ele teria feito se estivesse em seu lugar. Ela argumenta que havia uma vaga de guarda do campo nazista, que pleiteou a vaga e conseguiu o cargo tendo, obviamente, que cumprir ordens. Mais uma vez vem à tona a frase que anteriormente apontamos: “Não importa o que sentimos, mas o que fazemos”. Apoiada nisto, ela realiza os atos que a levam ao tribunal – não sem sentimento de culpa, como apreendemos de seu último gesto –, ela envia o dinheiro para a filha da sobrevivente do campo nazista (que ela reencontrara no tribunal) e comete suicídio (gesto simbólico de autopunição).
Esse filme instiga-nos a vários questionamentos: até que ponto alguém é capaz de guardar um segredo? Renunciar ao amor e a uma vida é coerente quando vivê-los implica na exposição de um segredo que nos humilha? Que vida alguém pode ter após destruir tantas outras vidas? Quem pode livrar-se da culpa, quando a existência aponta-nos para as consequências de nossas ações impensadas e realizadas no irremediável?
Michael, por sua vez, também é uma personagem complexa. Ele passa sua vida inteira preso às lembranças da mulher com quem ele descobriu as vicissitudes do amor. Em algumas cenas, percebemos sua incapacidade de permanecer na cama com uma mulher após relacionar-se sexualmente com esta. Sua primeira amante deixou nele lembranças intensas demais para que ele consiga retomar a vida sem recordar-se de que ela existiu.
A cena em que Michael e sua filha Júlia vão ao túmulo de Hanna, em 1995, ocasião em que ele passa a contar para ela quem era aquela mulher sobre quem ele nunca falou, parece-nos uma tentativa de libertar-se, também ele, da culpa de não tê-la absolvido, com seu testemunho, da condenação. Ou mesmo da culpa de ter dado continuidade à vida – mesmo marcado pelas lembranças do passado – sabendo que ela poderia estar livre se ele tivesse dito no tribunal aquilo que ela tanto quis ocultar.
Essa é uma história de amor, lealdade e, sobretudo, respeito. Mas é uma história amarga, que mostra o outro lado desse acontecimento tenebroso que foi o holocausto. Embora tenha sido visto o lado humano de Hanna, nem por isto ela foi isenta de cumprir penas pelos crimes hediondos que cometera. Hanna foi uma das poucas envolvidas com os crimes nazistas, dentre os oito mil trabalhadores que foram recrutados para tal empreendimento desumano, que foi condenada. Ela deve ter sentido medo, desejo de libertar-se, deve ter alimentado conflitos, no entanto suas ações eram motivadas por uma linha de raciocínio que a fez enfrentar a si mesma ante os medos e a motivou a realizar seu grande erro existencial: “Não importa o que sentimos, mas o que fazemos”.
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Cícero Émerson do Nascimento Cardoso: Professor de Língua Portuguesa da Rede Pública de Ensino do Estado do Ceará; graduado em Letras pela Universidade Regional do Cariri; especialista em Língua Portuguesa, Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa; mestre em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba; membro do Núcleo de Pesquisa em Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Regional do Cariri – NETLLI; membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Literatura e Sociedade Contemporânea - GELISC; membro do Grupo de estudos SÉTIMA de cinema. Autor do livro de contos Breve estudo sobre corações endurecidos (2011), Romanceiro do Norte Juazeiro (2014) e A revolta de Antonina. Publicou os folhetos de cordel A Beata Luzia vai à guerra e A artesã do chapéu (ou pequena biografia de Maria Raquel). Teve poema selecionado para o evento literário realizado pelo CCBNB “Abril para Leitura” em 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016. Tem texto publicado pela Revista de Literatura e Arte Boca Escancarada e teve soneto selecionado para antologia do Concurso Chave de Ouro de Sonetos - os Cinquenta Melhores, da Academia Jacarehyense de Letras. Desenvolve trabalhos vinculados à Literatura, Filosofia e Cinema.
Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 38, de dezembro de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.
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