por Davi Oliveira
“Só através da influência de indivíduos que possam fornecer um exemplo e a quem reconheçam como líderes, as massas podem ser induzidas a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de que a existência depende” Freud (O mal estar na civilização, 1927)
Mesmo que aparentemente opressora, esta afirmação é decorrente de uma enorme conjuntura de ações que podem ser claramente observadas no cotidiano. Talvez a existência de uma primeira rejeição a ela, dá-se pelo fato da tentativa de sobrepor a utopia de uma libertação plena a estas ações. A sociedade possui inúmeros arquétipos que justificam e reiteram esta base argumentativa, porém um já é suficientemente complexo para expor esta temática central: o arquétipo do “herói”.
Em muitos contos, lendas, mitos, filmes, séries, livros, fundamentos religiosos, etc., encontramos a figura de um ser que está à frente da libertação de um povo ou do mundo, uma figura poderosa, que aparentemente seria um qualquer em sua condição de autoconhecimento, mas que possui a missão de salvar as pessoas, o mundo, o universo e afins. Depois de passar por lições de “moralidade”, aperfeiçoa-se e se torna o ser mais poderoso, capaz agora de cumprir seu destino, sendo base para que outros sigam seu exemplo e/ou se tornem como ele.
Questionando este estereótipo de persona, surge o anti-herói, a figura protagonista que não age sob as expectativas da integridade e ação moral “corretas”, convencionalmente estabelecidas pela sociedade. Porém, não deixa de possuir a característica de lutar contra alguém e/ou uma opressão, servindo de exemplo de superação e/ou força contra algo. Em ambos os modelos, a sociedade expõe, em suas expectativas retratadas na arte ou em ações cotidianas, a necessidade de possuir um ser como guia de suas atividades e que dê potência à forma como vai agir. Quem nunca ouviu um professor utilizando um aluno como exemplo? Ou algum familiar expondo aquele outro que “se deu bem na vida”? Alguma figura religiosa sendo utilizada como exemplo de ações íntegras e que, apesar do sofrimento, possui a recompensa da libertação?
Somos afetados constantemente por esta concepção do “exemplo a ser seguido”, já que, como indiretamente afirma Freud (1927), a sociedade não é constituída de uma maioria autossuficiente com capacidade de se autogerir. Utilizando-se disto, mesmo que inconscientemente e com um bom domínio da retórica, algumas figuras, em meio a políticos, empresários, ministros religiosos e alguns líderes, conseguem ser uma minoria dos que dominam o capital e o poder em meio à sociedade. Por mais que esta reflexão seja aparentemente clichê e/ou ultrapassada segundo algumas correntes de pensamento, é um fato óbvio e prático que basta abrir os olhos para identificá-lo. Mesmo que, a partir desta reflexão, a libertação da sociedade pareça utópica e sem possibilidade de fuga, basta compreender um único ponto e assim as perspectivas existenciais podem mudar de direção.
Embora seja uma figura executando uma ação, este ser nada mais é do que uma máscara ou um recipiente qualquer que comporta algo que é essencial a sua existência como “herói” e que irá imortalizá-lo na história: a ideia. O poder de uma ideia, de uma mensagem e o signo que ela pode criar, tem mais força que qualquer organização armada, sistema econômico, entidade religiosa, ou qualquer ilusão criada para se manter o controle. Creio que o real não é o concreto a nível material, mas aquilo que se vive no momento, com convicção e certeza. Com isto, uma ideia pode ser mais real que a cadeira onde você talvez esteja agora, lendo este texto. Um conceito bem estruturado, exposto como capaz e real por aquele que acredita verdadeiramente, pode ser um símbolo de libertação para um povo. Não é a pessoa do herói, mas suas ações e ideias, porque no fim, a existência material é limitada, mas o ideal jamais morre.
“Um homem pode morrer, lutar, falhar, até mesmo ser esquecido, mas sua ideia pode modificar o mundo mesmo tendo passado 400 anos.” V.
Ocorrendo durante toda sua narrativa, estas questões criam um marco para a indústria dos quadrinhos: V for Vendetta de Alan Moore e David Lloyd - e posteriormente para a indústria cinematográfica: V for Vendetta, adaptação sob direção de James McTeigue, com roteiro de Joel Silver e irmãs Wachowski, uma obra que aborda o poder que uma ideia possui para construir a libertação de um povo. A narrativa discute a existência de um ser chamado Guy Fawkes que tentou explodir o parlamento inglês durante a Conspiração da Pólvora no século XVII, especificamente no dia 5 de novembro de 1605. Esta figura serve de exemplo para um personagem enigmático que surge na narrativa apresentando-se apenas como “V”. Este foi vítima de experimentos do governo, sobrevivendo a um drástico incêndio que resultou na perda de sua fisionomia, passando, assim, a assumir uma nova identidade e um novo rosto com uma máscara inspirada em Guy Fawkes. Não somente a fisionomia foi assumida, mas também a vontade de revolta contra a tirania de um governo liderado por princípios fascistas, religiosos, ditadores, que se aproveitam da fraqueza do povo, através da manipulação dos meios de comunicação, indústrias farmacêuticas, poder militar e de um controle organizado a fim de manter a “ordem” na sociedade.
A inteligência, habilidades, força e coragem de V criam assim um símbolo para o povo, sendo ele um sinal de luta, esperança e resistência durante a narrativa. V não aparece apenas como um personagem que representa uma simples individualidade, mas sim toda uma sociedade oprimida. A priori possui interesses pessoais de vingança, porém, que convergem e se expandem para o interesse de toda uma sociedade, sendo ele a ideia que pode ser a força motriz para as demais pessoas. V mostra que a libertação não é utópica, desde que se viva o ideal e que este seja organizado e forte o suficiente para desestruturar qualquer sistema. “O povo não deve temer seu governo, o governo que deve temer seu povo” V.
V é o exemplo para que as pessoas se libertem e sejam exemplos para elas mesmas, dando a esperança de que a ordem de um governo tirânico pode ser superada, desestruturada e remontada a partir dos interesses da maioria e não de uma minoria que consiga o poder. A questão está na estruturação da ideia, na não-posse de um conceito para suprir e retificar apenas um fato pessoal, que o move a justificar suas ações em prol de fundamentos que, no fim, eram meramente egocêntricos, mas compreender a causa dos efeitos e suas abrangências, estruturando, assim, uma base teórico-prática que sirva de material para a posteridade utilizar em causas maiores.
A libertação individual é a maior força e exemplo para se gerar demais libertações, como se pode ver no I Ching e no Taoísmo, a não-ação é a real ação. Justificando-se assim pelo fato do V ter alcançado a sua emancipação e não ter logrado a conquista de seguidores. Sendo um símbolo, isto aconteceu naturalmente. O exemplo e a força existencial de uma ideia podem acabar valendo mais que mil conceituações e tentativas de conversões.
V de Vingança não é somente uma obra artística de alto mérito devido à riqueza em suas produções, tanto escrita quanto cinematográfica, mas também por sua força argumentativa e pela criação de uma máscara que guarda um conceito, um ato, uma memória, uma força e uma esperança de mudança.
“Por baixo desta máscara não há só carne... Por baixo desta máscara há uma ideia [...]. E ideias são à prova de bala!” V.____
Davi Oliveira é graduado em Música pela UFCA, violoncelista e compositor de músicas minimalistas. Estuda e trabalha com performance, dança contemporânea, teatro e Cinema. É terapeuta Holístico, professor de Yoga, Tai Chi Chuan, Reikiano e estudante de Esoterismo.
Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 36, de outubro de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.
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