domingo, 1 de janeiro de 2017
Histórias de nós
por Ailton Jesus
Quando ouvi pela primeira vez a banda Goldfrapp, mais ou menos dois anos atrás, estava numa cafeteria com uma amiga. Por um momento me perdi na conversa - que nem me lembro do que se tratava - porque precisava identificar aquele som maravilhoso que eu lutava para ouvir em meio aos ruídos das pessoas ao redor. O nome da música era “Drew”, terceira faixa do sexto álbum da banda.
Goldfrapp é uma banda londrina de música pop, eletrônica, synthpop, new wave, entre outros estilos, que em seu álbum Tales of Us aposta num som mais acústico, bem diferente de trabalhos anteriores. Tales of Us. Histórias de Nós.
O duo, formado por Alison Goldfrapp e Will Gregory, nos apresenta, nesse álbum, histórias de indivíduos envoltas em discussões sobre gênero, sexualidade, memória e a busca por identidade. Esse mergulho no mar da existência, onde a procura do “eu” é algo que todos temos em comum, é retratado magicamente pela banda.
Cada faixa é batizada com o nome de seu/sua protagonista e cada um dos cinco videoclipes – “Drew”, “Annabel”, “Jo”, “Stranger”, “Laurel” – disponibilizados aos poucos, logo após o lançamento do disco, é iniciado com o título do álbum e um carimbo (exceto o vídeo “Jo”), empunhado por mãos diferentes numa montagem que diz “essa marca somos todos nós”. Vemos então um papel em nossa frente, e uma mão desconhecida desenha um nome, uma assinatura, como uma carta ou diário, feito para contar do caminho percorrido dentro de si. Cartas e diários posteriormente transformados em som e imagens em escala de cinza para o nosso deleite.
Os videoclipes foram dirigidos por Lisa Gunning, cônjuge da vocalista, e trazem uma fotografia que invade a intimidade do movimento dos corpos e do poder dos olhares, com personagens filmados como quem contempla o humano e a natureza em suas nuances quase sagradas.
Em “Drew” isso fica ainda mais evidente. A protagonista figura em seu vestido preto de botões enormes em contraste ao naturalismo de imagens claras e reluzentes, entre desejos aos quais não ousa se entregar e ao mesmo tempo alheia aos prazeres que lhe rodeiam. Tudo é belo e ingênuo como num paraíso e ela é a estranha no ninho, pois castra a si mesma constantemente. É preciso entregar-se, mas a dúvida sempre aflora e a tela entra em catástrofe e quase falha, alternando entre claro e escuro nesses momentos. E quando finalmente resolve se libertar, retorna ao seu quarto, de onde observava tudo à distância, e percebe que o tempo todo nem era ela mesma aquela pessoa.
Além de “Drew”, em outros três clipes o slow motion é utilizado em abundância, nos levando a encarar as imagens como oníricas, fora do tempo cronológico, com foco nos corpos, nos permitindo apreciar os movimentos das personagens e analisar cada emoção, esteja esta escancarada ou apenas insinuada.
A música “Annabel” faz clara referência ao livro de mesmo nome da escritora canadense Kathleen Winter, que conta a história de um jovem, nascido intersex, cujos pais lhe escolhem o sexo masculino. Na música, uma terceira pessoa – talvez a mãe – conta dos anseios do jovem que sente falta dessa sua parte feminina que lhe foi roubada, como dizem os versos “When you dream you only dream you’re Annabel[...]” (Quando você sonha, sempre sonha que você é Annabel) e “Why they couldn’t let you be both, Annabel?[…]” (Por que não lhe deixaram ser ambos, Annabel?). Durante o vídeo, o jovem é mostrado isolado em seu mundo. Na floresta, ele – ou deveria dizer “ela”? – constrói uma pequena cabana onde guarda suas bonecas, flores, colares de pérola e até mesmo uma foto de David Bowie, enquanto desenha figuras femininas nuas em meio à natureza.
É interessante perceber certas semelhanças entre esses dois clipes, pois elas nos remetem às questões de busca de identidade características do álbum. Os corpos em meio à natureza, enquanto símbolos de libertação, personagens com conflitos identitários vestindo preto em contraste com o mundo a seu redor, espelhos, foco nos movimentos e nos olhares, a insinuação visual de que os conflitos acontecem dentro dos personagens: elementos que se repetem e compõem o universo complexo de seres humanos perdidos no mundo e em si mesmos, retratado pela banda.
E quando se trata da busca do “eu”, é constante, talvez até necessário, levar em consideração o passado, como na música “Stranger” (estranho), única música do álbum cujo personagem não tem nome. O vídeo começa com o som do mar, uma protagonista – mais uma vez trajando preto – na praia, de costas para a câmera. Vemos então seu rosto enrugado e tem início a música, porém abafada, distante e ecoando, como o passado sussurrando em nosso ouvido, até que toma forma na tela a mesma mulher, agora um pouco mais jovem, prestes a nos contar sua história.
“Jo” e “Laurel”, do conjunto de vídeos os que mais se diferenciam esteticamente dos demais, com o primeiro apresentado em cores e o segundo abrindo mão do slow motion quase constante nos anteriores, e levando o ambiente urbano para dentro do universo de Tales of Us, são, ainda assim, tão belos, significativos e cativantes quanto os anteriores.
Esse livro de contos em melodia criado por Goldfrapp aparece para mim como um presente, numa manhã fria em um café, com uma amiga muito querida, numa conversa que se perdeu assim que o som conseguiu me alcançar entre o barulho dos talheres e do dia a dia. Muita coisa mudou desde esse dia, mas a busca permanece. Talvez por isso, por me ver em cada personagem descobrindo um pouco de sua essência a cada olhar, Tales of Us continue a mexer comigo. Tales of Us. Histórias de Nós.
“Drew”:
“Annabel”:
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Ailton Jesus: estudante de Engenharia de Materiais. Por obra do destino também é ator, quando sobra tempo, músico, e usa o cinema como ferramenta de autoconhecimento.
Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 35, de setembro de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.
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