quarta-feira, 16 de novembro de 2016
Velhice, memória e anonimato: sobre ‘Nebraska’, de Alexander Payne
por Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
Alexander Payne, em seu filme Nebraska, sugere que é possível acontecer um assomo de vida quando a decadência, a frustração e o esvaziamento parecem engolir vorazmente a existência anônima de um ser humano.
Este drama em preto e branco atira sobre o espectador a personagem Woody (Bruce Dern), um homem de idade avançada cujas lembranças não parecem concatenar com a “veracidade” dos fatos por ele vividos – e o que é a veracidade dos fatos quando o que está em pauta é a memória? Ele, com a crença de que fora condecorado com um prêmio milionário, decide que deve buscá-lo na cidade de Lincoln, em Nebraska.
Duas atitudes norteiam sua obstinada tentativa de recolher o prêmio: ele quer comprar uma caminhonete e um compressor de ar, e quer deixar uma herança para os filhos. Acontece que Woody apenas recebera pelos correios uma propaganda de uma loja sediada em Lincoln, fato desconhecido pelos demais integrantes da família.
A propósito, Woody é casado com Kate (June Squibb). O casal tem dois filhos: David (Will Forte) – um vendedor que está em processo de término do relacionamento – e Ross (Bob Odenkirk) – que parece bem-sucedido na vida conjugal e profissional.
Pode ser uma visão hiperbólica, mas a personagem Kate, cujo comportamento não condiz com estereótipos atribuídos à personagem feminina idosa, traz vivacidade à atmosfera por vezes lúgubre em que as demais personagens se inserem. Ela representa a “sobriedade” na relação conjugal, mantém a casa sob seu controle e não hesita em mostrar o que pensa.
Duas cenas protagonizadas por ela são emblemáticas: 1) com a intenção de “prestar respeito” aos parentes do marido já mortos, vai ao cemitério, ao lado do filho, e olha as lápides enquanto rememora, com sua língua ferina, as falhas dos falecidos – ela chega a levantar o vestido para, sem pudor, mostrar a um ex-pretendente o que ele havia perdido se não tivesse falado tanto “em trigo”; 2) em outra ocasião, ela atira sobre familiares interesseiros e medíocres as imprecações que estes merecem por reivindicarem parte do dinheiro que Woody supostamente receberia.
Woody conta com a cumplicidade de seu filho David – parecido com o pai na teimosia e na tendência à idealização – que, solidário à obstinação do pai, decide levá-lo para Nebraska para que este obtenha o prêmio que acreditava estar prestes a receber.
Durante a viagem, por ocasião de um pequeno acidente sofrido por Woody, David decide levá-lo para descansar na casa de parentes que moram no lugarejo em que Woody nasceu e passou parte de sua vida. Os habitantes do local creem que Woody está rico, o que reforça a própria crença do idoso sobre seu iminente prêmio.
Estando com familiares e amigos que conviveram com Woody na infância e juventude, David vê o passado do pai vir à tona e decide ser seu cúmplice resolvendo, por exemplo, rixas antigas. Confirmamos isto citando a cena em que, por perceber que seu pai fora humilhado pelo mau caráter Ed Pegram (Stacy Keach), David não hesita em aplicar-lhe um soco.
A compreensão do filho ante a fragilidade do pai, a capacidade de realizar por afeição ao outro um gesto que representa a solidariedade àquilo que este acredita, embora essa crença seja aparentemente absurda, são os motes principais do filme de Payne. O que poderia ser um enredo medíocre, se não fosse trabalhado com as cores da sensibilidade por um diretor experiente, tornou-se uma obra-prima que enaltece a pungência das relações humanas no conflitante âmbito familiar.
Ao discorrer sobre a velhice, de modo a apontar seus valores, o jurista e orador Cícero (2013, p. 57)* afirma que: “Os frutos da velhice [...] são todas as lembranças do que anteriormente se adquiriu”.
Ao buscar aquilo que tanto deseja, Woody depara-se com a fragilidade de sua memória confusa, pouco afeita às lembranças – que Cícero considera como os bons “frutos da velhice” –, mas, no irremediável, há a esperança simbolizada pela presença: do filho amável; da esposa “ranzinza”, porém companheira; da retomada de suas lembranças colhidas pela especulação sensível do filho; da crença de que seria possível realizar desejos pessoais (como comprar uma caminhonete e um compressor de ar), mas também doar ao outro, com altruísmo, aquilo que lhe fora negado por algum motivo – Woody queria deixar para os filhos posses materiais que representassem para eles alguma dignidade futura, como para compensar o que não lhes deu durante a vida.
Nebraska é um filme que discorre sobre a velhice, no entanto não percebemos, ao menos de forma explícita, qualquer apologia otimista aos valores que ela pode representar ao ser humano. Entretanto, ao apresentar Woody que, mesmo sob efeito de uma ilusão, sai de sua zona de conforto e aventura-se em busca de realizar sua meta, podemos perceber que nem tudo é frustração ou decadência nessa obra. Woody reencontra novos horizontes e consegue – assim como os que não se deixam levar pelo pessimismo e pelos empecilhos existenciais – se redimir de uma vida letárgica e, por vezes, obscura.
Segundo Cícero (2013, p. 34): “A velhice só é honrada na medida em que resiste, afirma seu direito, não deixa ninguém roubar-lhe seu poder e conserva sua ascendência sobre os familiares até o último suspiro”. É o que, do meu ponto de vista, Woody consegue fazer, não acha?
* CÍCERO, Marco Túlio. Saber envelhecer e A amizade. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2013.
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Cícero Émerson do Nascimento Cardoso: Professor de Língua Portuguesa da Rede Pública de Ensino do Estado do Ceará; graduado em Letras pela Universidade Regional do Cariri; especialista em Língua Portuguesa, Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa; mestre em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba; membro do Núcleo de Pesquisa em Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Regional do Cariri – NETLLI; membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Literatura e Sociedade Contemporânea - GELISC; membro do Grupo de estudos SÉTIMA de cinema. Autor do livro de contos Breve estudo sobre corações endurecidos (2011), Romanceiro do Norte Juazeiro (2014) e A revolta de Antonina. Publicou os folhetos de cordel A Beata Luzia vai à guerra e A artesã do chapéu (ou pequena biografia de Maria Raquel). Teve poema selecionado para o evento literário realizado pelo CCBNB “Abril para Leitura” em 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016. Tem texto publicado pela Revista de Literatura e Arte Boca Escancarada e teve soneto selecionado para antologia do Concurso Chave de Ouro de Sonetos - os Cinquenta Melhores, da Academia Jacarehyense de Letras. Desenvolve trabalhos vinculados à Literatura, Filosofia e Cinema.
Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 34, de agosto de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.
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