Grifo nosso # 36
Amanhã será exibido em Juazeiro do Norte, um dos grandes filmes do cineasta baiano Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol (1964). Para atentarmos um pouco melhor e para que debrucemo-nos sobre sua obra, trago abaixo um insert de um livro do crítico e professor de cinema José Carlos Avellar. Nesse livro, Deus e o diabo na terra do sol – a linha reta, o melaço de cana e o retrato do artista quando jovem¹, Avellar nos aponta algumas questões desse filme, trilhando em diversos momentos do seu texto uma reflexão muito pessoal, sem deixar de forma alguma a análise fílmica de lado.
“A primeira vez que vi Glauber, na verdade eu principalmente ouvi Glauber. E é possível que esta lembrança tenha contribuído forte para pegar esta cena como ponto de partida para uma conversa sobre Deus e o diabo na terra do sol.
Foi num cinema, durante uma sessão especial, pré-estreia de Porto das caixas (1963) de Paulo César Saraceni. Sala cheia, muita gente sentada no chão e eu, que chegara meio em cima da hora, entre eles. A certa altura da projeção algumas pessoas começaram a dizer baixinho uma qualquer coisa contra o filme. O falatório se tornou um ruído incômodo, desviando a atenção da tela até que de repente um vozeirão por trás de meu ouvido berrou um protesto que, se bem me lembro, era um acúmulo de xingamentos:
“Cala a boca idiota, burro, cavalo, animal, cafajeste, sem mãe!”
Era ele.
Ainda não o conhecia pessoalmente, fiquei conhecendo ali. Mal terminou a sessão, olhei para trás e Glauber abriu um papo com todo mundo em volta, falando bem do filme e mal da gente que atrapalhara a projeção.
'Martin Scorsese contou a dona Lúcia, mãe de Glauber, uma história parecida. Ele estava num cinema em Roma quando alguns espectadores começaram a dizer uma qualquer coisa contra o filme italiano que passava. Um vozeirão explodiu na sala exigindo silêncio e a plateia ficou quieta. No final da sessão Scorsese ficou sabendo que o vozeirão era de Glauber, que ele admirava sem conhecer por causa de Terra em transe. A partir de então sua admiração cresceu. Uma voz apaixonada que berra em defesa de um filme: uma imagem que ficou de Glauber.'
É possível também que uma outra lembrança sonora de Glauber tenha contribuído para trazer esse fragmento do filme mais forte na memória.
No final dos anos 1970, uma sessão especial, fechada, só para ele, de Cabezas cortadas (1972). Estava ali ao lado, por acaso, ele me chamou, acabei vendo o filme ao lado dele. Vi, na verdade, com um olho na tela e outro em Glauber, que, debruçado sobre meu ouvido, comentou o filme o tempo todo, sussurrando observações sobre o que lhe parecia bom e o que não lhe agradava, analisando o ator, a fotografia, a montagem – transformando a projeção na ilustração de uma crítica de cinema.
É possível ainda que o trabalho de voz de Othon Bastos – em Deus e o diabo na terra do sol² – tenha igualmente contribuído para pensar o filme a partir de um momento em que a fala, o jeito de falar do ator, carrega a cena. Além das vozes que faz quando Corisco conta o que se passou em Angicos para o cego Júlio, Othon Bastos faz ainda uma outra voz, a do Santo Sebastião – algo mais grave que as de Corisco e Lampião. A ideia surgiu na montagem, usar a mesma voz para deus e o diabo, de modo a que o espectador pudesse identificar uma certa semelhança entre as propostas e mais rapidamente concluir com o filme que a terra é do homem, nem de deus nem do diabo.
E mais, filme marcante por sua invenção visual, Deus e o diabo na terra do sol deixa gravada na memória um bom número de vozes: frases-imagens como a do Corisco gritando “Mais forte são os poderes do povo!”, a de Sebastião repetindo o Conselheiro, “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, uma outra de Corisco, “homem nessa terra pra ter validade tem de pegar nas armas pra mudar o destino”, ou como a do cantador que conclui a história lembrando “que assim mal dividido esse mundo anda errado, que a terra é do homem, não é de deus nem do diabo”. Palavras de plasticidade idêntica à das imagens, observou o escritor Alberto Moravia: “a partir do momento em que entra em cena Corisco, a representação alcança efeitos estranhos e terríveis, de notabilíssima eficácia expressiva. O grande achado de Rocha esteve em acampar a figura do bandido, bárbara, atroz, tetricamente retórica, sinistramente racional, bem no meio de uma solitária e desolada clareira do sertão, durante toda uma espécie de monólogo que toma a segunda metade do filme. Corisco, o rosto e as mãos sujas de sangue, fala e fala; em torno dele, rodam, arquejantes e estupefatos, os outros bandidos; atrás dele, aprofunda-se o sertão, maligna estepe de areia e sarça: a palavra, que no cinema é quase sempre subsidiária, aqui, nesta imobilidade alucinante, adquire um valor representativo e plástico não inferior àquele da imagem”.
Mais forte no entanto que tais lembranças existe o sentimento de que nesta cena, ao apresentar Corisco como um homem de duas cabeças – uma por fora, agindo, e outra por dentro, pensando – e ao tornar visível a tensão do olhar (a câmera se fixa no cangaceiro, o ator se representa pra ela), Glauber sugere um modo de se relacionar com o cinema. Com este filme em particular e com tudo quanto é filme de um modo geral. Sugere um espectador igual a Corisco, de duas cabeças: uma sentimento, outra razão; uma, de olhos fixos na imagem, vendo o movimento, a outra, cega como o cego Júlio, pensando o movimento; uma pensando a cena, a outra vendo o olhar.
Mais forte ainda, uma observação de Glauber três anos depois da estreia do filme: “Quando filmei Deus e o diabo gostei muito da paisagem e também da figura de Corisco. E inclusive, assumi uma atitude crítica mas sentia-me ligado a este personagem.”
As duas vozes do cangaceiro na tela, as duas vozes de Glauber na memória, as muitas vozes de Othon Bastos, a observação de Glauber reforçam a sensação de que a imagem de Corisco como Lampião, embora se encontre na metade da história, é um dos pontos de partida de Deus e o diabo na terra do sol.”
Trailler original do filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, 1964.
Música “Manuel e Rosa”, da trilha sonora de Deus e o diabo na terra do sol
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¹ AVELLAR, José Carlos. Deus e o diabo na terra do sol: a linha reta, o melaço de cana e o retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1995. (Artemídia).
² Grifo meu.
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