sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Os Irmãos Aniceto e a ancestralidade Cariri em trecho de livro de Pablo Assumpção

 

ilustração de Reginaldo Farias

Um pouco sobre os Irmãos Aniceto e a ancestralidade cariri/kariri (por Pablo Assumpção):

“[...] Hoje, reconhecidos como patrimônio cultural do Ceará, os Aniceto e as outras bandas do Cariri nem sempre foram bem vistos. Revendo a história, descobre-se que a trajetória das bandas cabaçais no Crato é historicamente marcada por altos e baixos. No começo desse século [à época, século XX], só nessa cidade foram juntas mais de trinta para receber o bispo do Ceará, D. Manuel. Era o período áureo da cabaçal. Com o passar dos anos, elas foram reduzindo-se e refugiando-se unicamente nos sítios. Uma verdadeira luta se travou contra as zabumbas, consideradas como verdadeiras inimigas do progresso.

Assim, em nome da civilização que penetrava no vale, contra as velharias que prendiam a cidade ao passado, a música de couro precisava desaparecer. O forasteiro litorâneo não podia surpreender-se a tocar em instrumentos tão bisonhos e primitivos, em pleno centro citadino. do Crato, a cidade que a essa altura já tinha eletricidade, jornais, cinemas e colégios. Foi então que o prefeito – na época, José Alves de Figueiredo – proibiu a execução das bandas cabaçais em dias comuns, nas feiras, e a desfilar pelas ruas. Essa foi a época de decadência da zabumba, quando a tradição apresentava-se como a grande inimiga do progresso.

Não se sabe as consequências dessa proibição para a tradição das cabaçais, embora seja provável que isso  pôde muito bem ter significado a extinção de um bom número delas. Mas o fato é que não significou o desaparecimento desta arte, tendo ela perdurado até os dias de hoje, quando, às vésperas do século XXI, ainda se tem oportunidade de assistir a representações da mais pura dissipação estética e popular. Esse é bem o caso da música de couro e performance da Cabaçal dos Irmãos Aniceto, grupo musical que melhor representa a permanência de elementos ancestrais cariris na cultura cearense.

[...] É perguntar a qualquer Aniceto vivo, hoje, e ouvir a mesma resposta: ‘essa bandinha vem de longe, ela já vem dos índios cariris; que os índios daqui do Crato eram assim muito alegres’. Há uma célebre frase entre eles, dita por Mestre Chico, Aniceto já falecido, que diz ser a banda cabaçal uma manifestação mais velha do que a própria invenção do Brasil: ‘A banda cabaçal vem desde a criação do mundo. Você já viu o retrato do Descobrimento do Brasil? Pois bem, pode reparar direito que lá tem uma banda de música dos índios tocando’.

E há sempre alguma verdade escondida por trás dos ditos e do imaginário popular. A cabaçal, tal como a aplaudimos hoje nos centros culturais, não existia antes do colonizador, mas é mesmo entre os índios que encontramos as matrizes culturais que justificam essa manifestação cênica e musical e o capital simbólico arrastado com ela. Foram os tapuias de língua travada os primeiros a rasgar no céu do Cariri cearense o canto místico da acauã, ave devoradora de cobras peçonhentas, entidade cujo canto trazia a lembrança de que os malignos seriam destruídos. Hoje, é Antônio da Silva, pifeiro e agricultor, quem grita no palco.

A região do Cariri inteira era povoada, antes da chegada de portugueses, africanos etc., por inúmeras tribos que, com outras tantas espalhadas pelo sertão nordestino, formavam a grande nação cariri. Etnia de idioma próprio, os cariris foram, constantemente, incluídos sem denominação especial no confuso grupo tapuia, compreendido pelo colonizador como o grupo indígena de língua travada, inimigos do tupi, que habitavam o litoral e falavam a língua real. [...]”
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No livro Irmãos Aniceto, de Pablo Assumpção. Edições Demócrito Rocha (Coleção Terra Bárbara), 2000.

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