por Petrônio Sampaio de Alencar
Acredito que o mais próximo que cheguei de um laboratório de alquimista foi quando visitei o ateliê de Luís Karimai pela primeira vez, conduzido por um amigo em comum. Ele não tinha qualquer pretensão de alquimia, mas a atmosfera maravilhosa e estranha do local assim se revelou para mim, naquele momento. Talvez mais ainda pelo aspecto mágico e fascinante que suas pinturas apresentaram perante meus olhos ainda tão acanhados em termos de noção de arte. Contemplei formas e cores num grau de complexidade jamais visto por mim.
Claro que eu já conhecia algumas obras dele, especialmente a tela que retrata a subida do Horto (obra que deveria ser tombada como patrimônio artístico municipal), muitas delas espalhadas pela cidade, em coleções particulares. Porém, como acontece de forma quase geral, só se conhece realmente a obra de um artista vivo visitando seu ateliê e apreciando sua produção pessoal e livre das amarras e limitações da encomenda. E a obra de Karimai é uma autêntica expressão de liberdades e experimentações. Daí o caráter revelador para mim daquela visita.
Recuando no tempo, lembro-me vivamente de quando era escoteiro e, participando de uma campanha de vacinação numa clínica, passei quase um dia todo, nos breves momentos de folga, admirando uma pintura em tela com uma assinatura no seu rodapé: Karimai 82. Era uma cena simples, mas comovente. Retratava uma cena nordestina, mãe e filho no cenário sertanejo de pobreza e desolação, tão típico da nossa região. Eu, que já gostava de desenhar, fiquei cativado pela tela.
Não longe dessa data, sem saber eu conheceria o autor daquele quadro num trecho de comercial televisivo da antiga Coelce. O artista aparecia pintando em seu ateliê sob a luz de lâmpadas. E aquilo não era só uma cena ensaiada. Karimai era um trabalhador infatigável, compenetrado e laborioso. Anos depois, ele me diria, demonstrando a necessidade de trabalharmos com seriedade, que havia largado a boemia do início de carreira, as noites nos bares, por considerar um desperdício de tempo. Então, dedicou-se integralmente ao trabalho artístico, dia e noite.
Eram tantas as obras ocupando os espaços das paredes do ateliê, entre pinturas próprias e encomendas, todas tão ricas em detalhes e efeitos que o espectador atencioso levaria horas para consumir tudo aquilo com os olhos. Paisagens de vastidões abertas, só interrompidas pelas serras distantes; figuras femininas divididas entre o sensual, o erótico e o dramático; flores exóticas reais e irreais; personagens misteriosos; cenas rurais e urbanas; ambientes metafísicos e sobrenaturais; a gente do Cariri; os mais humildes tocando suas vidas simples; as tradições culturais populares; etc., etc. E todo esse universo abarcado em formas e cores exuberantes exercia um hipnotismo que nos dominava até muito tempo depois da visita.
O desenho e a pintura de Luís Karimai constituíam uma força magnética e um campo gravitacional muito intenso sobre um sem números de artistas e jovens iniciantes que, como eu, o elegeram nosso referencial, nosso ídolo e mestre. Desse modo, formou-se uma legião de seguidores, de discípulos que o imitaram ou se deixaram influenciar pelo seu estilo. Influência inconfundível, pois inconfundíveis são suas criações, seu traço, seu repertório de temas e sua paleta única.
Luís Karimai era um pai amoroso, uma pessoa receptiva e um homem generoso. Mesmo necessitando de tempo e concentração para o trabalho, cuidava de sua prole com cuidado e carinho, bem como conciliava as brigas e disputas entre os filhos pequenos com calma e diálogo. E da mesma forma agia com visitas e estranhos que lá chegavam, sem demonstrar contrariedade ou aborrecimento pelo tempo roubado dos seus afazeres. Sei disso porque, como muitos outros, estive lá tantas vezes, e sempre fui recebido com sorriso e atenção. Pacientemente ensinou-me segredos do metiê artístico, a preparar telas de pintura, quando não ajudando-me a montá-las. Outras vezes cedeu-me materiais para trabalhar ou livros sobre arte para ler e estudar. E, tempos depois, indicou-me ou apresentou-me a colecionadores, para os quais vendi alguns desenhos e pinturas, começando profissionalmente minha carreira. Assim também procedeu com tantos outros iniciantes na arte.
O trabalho social que ele desempenhou com pessoas carentes foi uma decorrência natural da sua imensa bondade e consciência coletiva, bem como do seu caráter fraterno. A necessidade premente de pobres, indigentes e aflitos não poderia aguardar indefinidamente pelas promessas vagas dos governantes nem pelos frutos de uma luta social que, embora justa e necessária, tende a se arrastar por um longo tempo. A justiça social foi uma preocupação constante de Karimai, e ele sempre reagiu contra a discriminação, o preconceito, a violência, o machismo, o arbítrio, a ditadura e o fascismo. Sua obra plástica é um testemunho vivo disso. E por décadas, a fome de muitos foi atenuada por sua campanha de arrecadação de alimentos que percorria as ruas de Juazeiro do Norte.
O ensino de arte, as associações artísticas das quais participou, o cargo de secretário de cultura que exerceu nos anos 90, os projetos culturais que encabeçou ou colaborou, enfim, tudo o que ele fez ou se envolveu no setor artístico-cultural, toda a intensa e extensa contribuição de Karimai em distintos campos da sociedade juazeirense e caririense, nada impediu que injustiças fossem cometidas à figura publica e proeminente que ele se tornou. Sendo a mais séria e descabida de todas, na minha opinião, a ausência de suas obras na I Bienal de Arte do Cariri, realizada em Juazeiro do Norte, em 2002.
Numa demonstração de menosprezo pela produção pictórica local, a curadoria da bienal, estranha à terra, resolveu excluir os trabalhos dos pintores caririenses, desconsiderando o valor de um mestre local, como Karimai, cujas obras eram consagradas como símbolo do Cariri, uma das riquezas culturais da região e já alcançavam há tempos o reconhecimento para além dos limites do território nordestino, premiadas em diversas mostras, sendo vencedora de várias edições do concurso para a escolha da capa da Listel, a lista telefônica do Ceará. Ao mesmo tempo, ampliando o equívoco, a curadoria da I Bienal de Arte do Cariri abriu espaço expositivo para artistas vindos de fora, sem vínculo algum com o Cariri. A exclusão dos artistas, a revolta e celeuma gerada e a ausência de uma figura de proa do porte de Karimai causaram péssimas repercussões e prejuízo para o próprio evento, no final, apequenado e reduzido em importância e brilho. Um erro crasso cometido pela curadoria com a conivência das autoridades públicas. A bienal teve vida efêmera.
Em 1987 eu tinha vinte anos. Foi quando conheci Karimai. Ele morava numa pequena e agradável chácara, numa área quase rural, com a casa cercada de árvores, onde a criançada brincava à vontade. Pendurada numa parede do alpendre da casa havia uma pequena pintura retratando um homem de chapéu, um personagem estranho e misterioso que nos olhava fixamente. Ainda um pouco tímido, sentindo-me intrometido (e era!), criei coragem e perguntei a Karimai quem era tal pessoa. Sem rodeios ele afirmou se tratar de alguém que sempre aparecia por lá. Daí, tomei o sujeito como um visitante. Só tempos depois descobri que tal indivíduo era, na verdade, um ser espiritual. Desde então, olhar para as obras do meu amigo passou a ser um exercício de maior profundidade, pois a superfície da tinta poderia ser algo bem enganador.
Embora eu não seja vocacionado para o misticismo ou coisas do gênero, afirmo categoricamente, a partida precoce de Luís Karimai fez esta cidade perder sua mágica.
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Petrônio Sampaio de Alencar é artista plástico e professor de arte juazeirense. Iniciou sua carreira artística em 1987, dedicando-se ao desenho e à pintura. É também quadrinista, e mantém um curso regular de arte, o ateliê-escola Enclave Artístico, desde 2002.
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