por Amador Ribeiro Neto
Com o lançamento de for mar (Rio de Janeiro: Ed. 7Letras, 2016), temos, de pronto, a busca da cumplicidade do leitor. Este livro que não existe per se. Antes: seu projeto revela um primoroso cuidado em inserir o leitor como coautor. Aquele que vê, a cada leitura – muitas formam-se, configuram-se, consolidam-se após cada poema lido, relido, retomado – edificar-se uma arquitetura vernacular de fazeres – aquela, fundante da grande poiésis.
Se nos dois livros anteriores um programa poético já se anunciava, com o presente for mar funda-se uma trilogia da linguagem poética.
Flávio Castro é um exímio perscrutador dos labirínticos percursos de luz e sombra dos vocábulos. Nele, sempre o som articula-se num entranhado jogo de visualidade e significados. A palavra espaçada no branco da página, os exuberantes neologismos, a tessitura das imagens: tudo é massa de significações em alto grau.
Por isso sua poesia é um convite a voos – ora largos, ora curtos. Todavia, sempre dentro de um rigor riscado a ponta de faca. O rigor do sol com o pacto dos cactos. O rigor do sangue – vermelho ou seco – escorrido do corpo estirado no beco.
O corpo da poesia não é frágil nem fácil para este poeta que preza as filigranas de cada consoante, de cada vogal, de cada fonema. E de cada imagem: oferenda de um devoto a seus múltiplos deuses sígnicos.
Em consonância com a afiada prática da mais condensada poesia, Flávio Castro é poeta de ardis, armadilhas e artemísias. Sua poesia aguça, açula, isca, embeleza e é um antídoto à pasmaceira dominante na cena da nossa poesia hoje.
O “livrorrio” de Flávio Castro dialoga com as conquistas da linguagem de Mallarmé a Haroldo de Campos, passando por Cummings e Joyce, entre outros. Este leque dimensiona o fino paideuma deste poeta desassossegado e inquieto que sabe, com Octavio Paz: “a atividade poética é revolucionária por natureza; a poesia revela este mundo, cria outro”. Cônscio de que aquilo que ela inventa é a forma de usar a forma para além das fôrmas cristalizadas pelos manuais poéticos – e pelo desempenho editorial do mercado.
for mar possui 4 partes. Na primeira, que dá título ao volume, subintitulada “épico da linguagem”, não há exposição de ideias, ações, narração, contexto histórico determinado, personagens. O épico dá-se na transmutação da linguagem que processa um elo-de-elos quase ao léu, não fosse a argamassa da visualidade e da reverberação sonora. Formar sequências. Formar sentidos. Formar forma. Formar ar. Formar mar. Reverberar ondas de significações. Desta forma, as estrofes (às quais o poeta prefere chamar “blocos-estéticos”), duas em cada página, evoluem paulatinamente para, ao fim do poema, fundirem-se numa só mancha gráfica. Ou num só “espaço-tempo diagramado”.
Eis um fragmento do poema que abre o livro:
A segunda parte,“ideogramas”, processa neologismos de uma só palavra num mix de maiúsculas e minúsculas que criam uma ligação pictórica entre letras, sílabas, sufixos, prefixos, radicais, etc., – e o significado que se abre de um link para outros links: labiríntico jogo mallarmaico-cortázar-borgeano.
Em cada página do livro há um “poema ideogramático”:
A terceira parte, “braille”, radicaliza um procedimento que Edgard Allan Poe, Décio Pignatari e Luiz Ângelo Pinto constataram através da observação do código Morse. Mas, todavia, não desenvolveram: a desvocalização das palavras. Flávio Castro dá o pulo do gato e leva a percepção teórica à prática poética. O resultado são poemas que se oferecem com brincante prazer de interagir com a língua(gem) subtraída. Com isto o poeta vale-se da decantada mais valia da linguagem: less is more – na feliz expressão de Mies van der Rohe. Flávio Castro filtra a forma até seu grau minimalista. O leitor segue nesta via de mão única, inicialmente, colhendo vocábulos dicionarizados mas, depois, percebe-se recolhendo o inusitado dos neologismos. O gozo do make it new, das formas feitas, e do in progress, das formas por-fazer, toma conta da leitura. Melhor dizer: da coleitura. Cito a parte inicial deste poema:
Em ‘côdea’ a parte final do livro, o poema “ravinas”, constituído por sete partes, desenha o final de uma via, de uma viagem, de uma linguagem – linguaviagem, para citar uma obra de Augusto de Campos – que se fecha e se abre. Isto porque a poesia de Flávio Castro é um presentar no sentido heideggeriano do termo: um continuum entre velado e desvelado. Iluminação pós-velamento. Oroboro comendo Fênix.
Cito dois fragmentos:
O percurso épico de for mar soma-se aos de Audito e de Inaudito encerrando a trilogia com o “fátuofogorgíaco” de Nékuia. Elançando passos, braços, laços – da linguagem – a Ulisses-Homero.
Na odisseia da poesia que se sabe, que se faz, que se forma, for mar é irretocável.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
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