por Amador Ribeiro Neto
A poesia brasileira contemporânea, em parte, vai muito bem. Nomes (de poetas vivos) como Adélia Prado, Ademir Assunção, Adriano Espínola, Alberto Lins Caldas, Alexandre Guarnieri, Alice Ruiz, Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, Arnaldo Antunes, Carlos Ávila, Cazé Lontra Marques, Delmo Montenegro, Flávio Castro, Frederico Barbosa, Glauco Mattoso, Lau Siqueira, Líria Porto, Márcia Maia, Marco Lucchesi, Marcos Siscar, Maria Lúcia dal Farra, Paulo Henriques Britto, Rodrigo Garcia Lopes, Ronald Polito, Rosana Piccolo, Ruy Proença, Sérgio de Castro Pinto, Simone Andrade Neves, Susanna Busato, Virna Teixeira, Zuca Sardan, dentre outros, comprovam sua aprumada materialidade. E, sem dúvida alguma, o maior de todos: Augusto de Campos.
Presentemente novo nome vem juntar-se a estes já grandes: Daniel Francoy. Sua poesia é potente: seduz o leitor ao primeiro contato. É arquitetada na mais elaborada linguagem. E, coisa rara, desenha rico universo de reflexão sobre o mundo e os sentimentos.
Esta poesia opera uma operação algébrica: sublime materialidade da palavra + densa argamassa das ideias + exata musicalidade.
Ao lê-la, o leitor sente o impacto que a grande arte provoca: o que é lido ergue-se em inusitadas configurações. Ainda que cotidianas. Ainda que vistas e entrevistas pelas janelas de todos os dias.
Eis onde reside um dos méritos de sua obra: no vértice da mais refinada poesia entretecida por um rol de ideias, preenchido de significados, significações e significantes. Quer seja: a palavra em sua dimensão absoluta: o vocábulo em si, seu uso figurado e imagético (no caso, imagem marcadamente musical).
Esta poesia segue na contramão da pauperização da linguagem. Insubordina-se contra a debilitação das reflexões. Tem gana, força e coragem de guiar-se contra a mesmice cristalizada (e aplaudida) por grande parte da produção poética brasileira contemporânea.
A poesia de Daniel Francoy é rigor associado à leveza. Encanta. Arrebata. Ela desconstrói imagens, pensamentos e ritmos descoloridos pela voracidade da comunicação rápida e barata. Insurge-se, com ousadia, contra as expectativas do mercado editorial e as dos leitores acomodados. E ainda mais: à afronta da ironia, da irrisão, do cinismo, no niilismo, da antipatia contrapõe a ternura. A ternura de uma visada ao mesmo tempo branda e dura.
Branda, na amorosidade com que revela o mundo e os sentimentos. Dura, na honestidade de tomar a vida sem os torneios dos enfeites. Sem os contornos das dissimulações. Tal procedimento instiga o leitor empenhadamente sério, o leitor-contra (ao gosto de Cabral e Augusto), o leitor-sensível (ao gosto de Adélia e Bandeira).
A poesia de Daniel Francoy sabe erguer-se na fronteira do necessário e do honesto. Cavouca fundo sem temer que tipo de verdade que possa encontrar. E, ao encontrá-la, não a revela com a fúria das bombas. Antes: inesperados maravilhamentos cotidianos desabrocham. Lição de poesia para todo aluno-leitor receptivo à outra alfabetização. Aquela que prioriza a sensibilidade do sujeito dentro (e ante) o mundo.
Sim, a força desta poesia impõe-se como novo e necessário aprendizado. Depois de lê-la, uma missão impossível se apresenta: esquecê-la. Como a descoberta de um novo amor, ou a morte súbita de outro, sua experiência perfura e perpassa o corpo, a memória, a cabeça, o coração. Aquilo que se sabe de arte e de poesia é posto em suspensão. E adentra-se a galáxia de epifanias: aclaramento cru do mundo e da história. Descoberta de si através das luzinhas da estrela-poesia (dentro da noite escura da vida).
Há na poesia de Daniel Francoy laivos de T. S. Eliot e de Fernando Pessoa. Naquilo que ambos têm de feliz associação entre filosofia e linguagem. Com o adendo: Daniel Francoy dialoga com estes dois grandes mestres, porém a voz que canta – poderosa e de timbre único – é a de novo poeta. Novo na idade. Novo na experiência das publicações. Novo no patamar que passa a ocupar na cena de nossa poesia. Novo na força de uma nova poesia que nasce no Brasil.
O leitor terá percebido que vivo o fascínio causado pela poesia de Daniel Francoy. Por isso compartilho esta descoberta de imensos prazeres e singular identidade.
Transcrevo poemas do livro Identidade.
ABRIL
De todos os meses, abril
é o que melhor me ludibria:
não há segunda vida — as pradarias
ainda são terra queimada
e o orvalho que virá, noite alta,
será mais cruel para as raízes
do que o gelo misturado ao barro.
Ainda cansado. Ainda com os olhos
batidos pelo calor mais antigo
e pelas sombras mais viscosas: espectral
voz marítima em cidade distante do mar.
A voz do luar — impuro delírio.
A voz do que naufragou e foi levado
pelos torvelinhos: cabelos com gosto de sal,
o coração tocando melodias alucinadas,
as frutas ácidas que perderam o sabor,
um preço muito alto ou muito ínfimo pelo amor.
Assim entro em abril. Assim o azul sem nuvens
se abre como uma terra sem máculas, uma terra
lavrada para o que nunca nasceu.
Assim os dias retornam à repetição:
as nuvens surgem à tarde, ora ventos exíguos,
ora redemoinhos de terra escarlate;
ora o que está distante parece próximo,
ora o que está presente mal se sente.
Assim as noites se desprendem
de um esbrasear fugidio: as estrelas são chama branca
e branca névoa sopra por entre as ruas quietas.
Todos sentem sono. Todos se enrodilham
a uma mágoa que parece suave,
a uma tristeza de voz débil,
a um doce tédio que mal volve os olhos
para as mortas raízes entre a terra revolvida.
CLARIDADE
Se ao menos não houvesse dúvidas:
é aquela hora de bruma e de medo
e a relva, amanhecendo úmida,
tem como raízes vísceras misturadas.
Se ao menos soubéssemos: sob o luar
Joana D’Arc é queimada e ascende
ainda mais translúcida do que a brisa
desfeita pela fuligem — é aquela hora
de árvores inertes e muros ensanguentados.
Se ao menos contemplássemos: arde
a cidade e somos nós os saqueadores,
nós os negros, nós os gregos, nós as troianas
deixadas ao estupro, aterrorizadas
por uma suspeita que jamais se confirma.
O que será esse rumor? Ratos
correndo no forro dos telhados ou torvelinhos
de vento uivando durante a madrugada?
Se ao menos uma palavra nomeasse
a pedra escura queimando o peito —
mas não: é meio-dia, faz sol
e a praça central se afoga em claridade.
DEZEMBRO
Tão baixo, possível, familiar,
o luar é apenas sujeira no céu.
Ainda mais abaixo, há grilos, mosquitos,
morcegos, a água barrenta
de um riacho, a doçura
dos frutos rachados pelos vermes
e também a aspereza
em rostos que o tempo tratou
como pedra que nunca foi movida.
Não fui uma ave migradora
e há rios que deixam de fluir
sem encontrar algo maior.
NA FRONTEIRA ÚLTIMA DA CIDADE
Acordo e o que existe de opaco, no sono,
perdura no primeiro instante:
o eco da chuva vinda na madrugada,
o bafio seco, o ar exaurido, a fria luz
do começo do sol. A fria luz e o alvorecer
semelhante à neve suja.
Acordo e o que existe de torpor
permanece nos primeiros movimentos:
levantar-me,apartar-me
do corpo que ao lado dorme, lavar-me,
promover o encontro da pele ferida
com o vento tornado áspero,
com o branco céu que recrudesce.
A cidade é um galpão de tetos baixos e luzes mortiças.
O fumo dos cigarros. O fumo dos motores.
Voltar a dormir durante a viagem de ônibus
e contemplar a paisagem entre lapsos
de consciência:
o rio é mais lama do que água
e no entanto o rio
é para onde fogem os animais mutilados
A cidade é um galpão de paredes de vidro
e o calor fere os olhos ao atravessá-la
e rebrilha quando o céu deixa de ser branco.
Nunca passei por esta estrada
e não vi ao menos uma árvore coroada de flores
em exaltado esplendor.
Como se um deus estivesse ferido
no coração pela ponta de uma lança
e não mais deixasse de sangrar.
Ainda quando o dia é estio, ainda
quando o céu é limite incendiado,
a perpétua agonia de um deus que não morre
é o que explica a coroação alcançar fevereiro,
quando o calor já calcinou todas as raízes.
Na fronteira última da cidade e mais além
estão os ipês e me pergunto
se o amor, com a sua natureza bravia,
terá a mesma permanência.
AUTORRETRATO
Diante de mim, na parede
em que aparecem os primeiros sinais
do tempo infiltrado, há uma prateleira
ainda por arrumar.
Virá alguém um dia e dirá
é uma casa com a beleza
das ruínas e então
serei como qualquer pessoa que morreu
quando eu ainda não era nascido.
Em tempo – Notícia boa: o poeta tem novo livro no prelo. Aguardemos.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica) e Barrocidade (poesia). Mora em João Pessoa (PB).
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